07/07/2023

Ladainha de Sanjuão na casa de Sêo Piroca

Lídio Teles (*)

Manué contou que Sêu Piroca era um dos entusiastas promotores de festejos juninos da localidade de Rio do Braço. Suas festas não só se repetiam com regularidade todo dia 23 de junho como a cada ano a ela acorria mais gente, alguns que o dono da casa não conhecia, outros que ainda sequer o havia visto. E ele poderia até deixar de comprar remédio, roupa nova, um novo animal para os serviços domésticos, só não deixava mesmo era de rezar todo ano, com comes e bebes, a ladainha de Sanjuão...

Daquela vez era por volta das vinte horas e os primeiros convidados, famílias inteiras: homens, mulheres e meninos, começavam a chegar à casa do anfitrião, enquanto a grande fogueira de pau grosso e semi verde já ardia no fogo do terreiro, na escuridão da noite de São João. Na realidade todo aquele pessoal nem convidados seus eram, que em festas juninas de fazenda ninguém necessitava de convite para comparecer.

Naquele dia, mesmo que não houvesse muita coisa para arrumar, a casa de seu Piroca fazia gosto de se ver: o terreiro de chão batido da frente da casa onde se erguia a fogueira, todo recentemente aplainado de enxada e o salão onde mais tarde rolaria o forró noturno, varrido com vassoura verde de "rabo de raposa” e corrigidas as irregularidades do piso com barro fresco, além de o chão ser aguado com regularidade, a fim de não levantar poeira na hora do forrobodó; estava lindo de se ver!

Àquela hora a mesa da sala de jantar já se encontrava forrada com toalha nova quadriculada e os ambientes comuns da casa caprichosamente enfeitados com bandeirolas de todas as cores, coladas em lados opostos das travessas e presas por barbantes esticados de um lado para outro dos respectivos cômodos.

Nos fundos da casa de seu Piroca como nas demais da roça, havia um pequeno paiol onde eram colocados para secar e posteriormente armazenar pendurados sob a forma de cambões como roupas no varal, molhos de espigas de milho presas entre si pelas próprias palhas, bem como vassouras de pés de feijão, estas amarradas por cordas, com objetivos idênticos. Todos os anos naquelas ocasiões, aquele pequeno espaço que era mais um puxadinho no quintal junto à porta da cozinha, era utilizado como uma espécie de cozinha complementar a fim de dar conta das comidarias típicas da época.

Ali, embaixo daquela pequena cobertura de sapé ou de cavacos de "murici grande", apoiados em quatro forquilhas de biribeira para aguentar o peso, havia uma espécie de cama de varas coberta com duas fileiras de adobes e uma grossa camada de argila até à sua metade em comprimento, com um canal no meio onde, dentro dele era colocada a lenha e atravessados sobre suas bordas, tantas tiras de ferro quantas fossem necessárias para a quantidade de panelas a serem utilizadas: duas tiras para cada uma delas, evidentemente.

Naquela véspera de São João havia desde as dez horas da manhã quatro vasilhas no fogo: três panelas de barro de Nagé ou Maragojipe, onde as cozinheiras já cozinhavam milho, canjica e arroz doce, desde cedo, comandadas competentemente por Sinha Lixandrina, todo sapiente na arte da culinnária, e mãe do anfitrião, sendo que na última trempe, encontrava-se um belo e escovado tacho de cobre, grande e fundo, ocupando a boca principal da chapa de ferro do fogão de lenha, onde uma banda de leitoa de cerca de duas arrobas, que se destinava à farofa a ser devorada com café, num meio almoço da garotada ao amanhecer, fritava, picada em pedacinhos, na graxa de seu próprio toucinho.

Com tudo pronto para a festividade a noite era só alegria; à medida que a mesma avançava a vizinhança ia se aprochegando; a criançada à frente, a mulherada no meio e os mandachuvas na retaguarda, naturalmente com seus facões na bainha, na mão ou na cintura, sem contar que para alguns, a pistola de socar pela boca, de um tiro só, conhecida por “um tiro e uma carreira”, carregada de chumbo baleiro, o “central” de duas balas – também conhecido na região como la fonchê - a faca-pequena ou o punhal já haviam sido escondidos em qualquer moita no pasto, geralmente já após a cancela, como em qualquer local ali não era diferente.

A maioria dos convidados escondia suas armas no mato, porém os senhores mais respeitosos, educados, de comportamento impoluto e reputação ilibada, chegavam e davam as suas armas para que o dono da casa as guardasse, até a hora de ir embora ou da briga...

Sei que cumprindo o devido protocolo, o ritual assim começava.

Primeiramente as crianças:

– Bença Sêu Piroca.

– Deus te abençoe, filho.

– Bença seu Piroca.

– Deus te crie po bem, filho.

– Bença seu Piroca.

– Deus te dê boa sorte, filho.

 

Os primos (malandros):

- Boa note, Piroca, como tá tu?

– Boa note, Liro; num tô como tu mais vô passando.

– Lá ele; vai comê o cão.

Estrondosas gargalhadas!

A mulherada:

– Boa note, Sêu Piroca.

– Boa note, Dona Licriana.

– Boa note, cumpade Piroca.

– Boa note, cumade Bernada.

– Boa note, titio Piroca.

– Boa note, Martila.

Os Mandachuvas:

– Boa note, Piroca.

– Boa noite, Juão.

– Boa noite, cumpade Piroca; como vai?

– Boa note, cumpade Fulorenço; tô aqui com a cabeça pegada no pescoço.

Risadas...

– Boa note, cumpade Piroca; como tem passado?

– Boa note, cumpade Fostino; tô aqui mais veio do que onte.

– Boa note, cumpade Piroca; como vai sua pessoa?

– Boa note, cumpade Palo; tô aqui esperando a morte!

Risadas...

- Boa note, Piroca, como tá ocê?

– Boa note, Rozeno; tô aqui ficano cada dia mais veio e mais besta!

Trovão de risadas.

– Ô, Liro, cuma tá aí fora? Tô fazeno fie, tu tá sintino?

– Tá dodio! Lá ele! Vai fazê fie no capeta...

E davam-se risadas mútuas das brincadeiras e das muitas filosofias de Sêu Piroca, até à chegada do último que aparecia para a ladainha, por volta das 20 hs, no escuro ou com um facho na mão, que nas roças, sem luz elétrica, aquele horário já era considerado altas horas...

No terreiro de toda casa da roça tem sempre uma grande tábua apoiada em dois ou três pares de cavaletes, dependendo do seu tamanho, que serve de banco para o pessoal se sentar para contar causos, geralmente nas boca de noite. Esses causos versam na maioria das vezes, sobre visagens ou assombrações, mas aquela era uma noite de festa...

Como era noite de São João e estivesse fazendo muito frio, pra variar, como se diz, todos os machos - homens e meninos, naturalmente, não a ala feminina - encontravam-se em volta à fogueira quentando fogo, assando milho e batata doce no borralho da fogueira e soltando foguetes, bombas, cobrinhas, chuvinhas e balões coloridos de diversos formatos e variados tamanhos.

A meninada do velho Teles, como sempre a “mais bem educada e comportada da área”, encontrava-se sentada em fileira feito araras em galhos, no tal banco de tábua, ou em toras de pau que para tal se prestassem ao redor do fogarel desfrutando igualmente o calor do braseiro, quentando sua parte de fogo também.

De repente alguém gritou: - “Lavanta daí, mininos, que esse pau tá sujo de caivão”! – Não conhecíamos ou não utilizávamos os vocábulos tronco de árvore, árvore, nem madeira, dizíamos pé de pau, ou, pau, simplesmente, vara, ou mato. As gargalhadas foram gerais!

Como de fato a lenha que há algum tempo ardia no fogo, naturalmente produzia razoável quantidade de tições encarvoados, o velho imaginou que seus incautos pimpolhos haviam se sentado em paus sujos e em consequência melado os fundos das calças de carvão. E então, não titubeou: levantou-se, dirigiu-se à parede da sala onde fica a bainha de fação seca de bater em meninos, pegou-a, foi até cada um de nós e à medida em que com sua mão esquerda ia levantando o braço esquerdo de cada um, os fazia girar de maneira que ficasse com as nádegas bem à vista dele e dos demais, isto é, virada para o lado claro da fogueira e com o instrumento de suplício armado em sua mão direita pronto para entrar em ação tão logo constatasse a esperada suposta sujeira.

Enquanto isso convivas mais apressados já soltavam risadinhas abafadas, ao passo que outros olhavam estupefatos, até incrédulos, talvez, no que presenciavam, esperando pelo desfecho final, em se constatando o acerto da hipótese dos pirus e do velho paizão!

Felizmente ninguém havia tido a desventura de haver-se sentado em nenhum pau sujo. E entre envergonhados e humilhados, acabaram salvando-se todos intactos, e apenas o velho dera risada da triste cena por ele próprio protagonizada.

Quanto aos "mininos do véi Martins”, pelo menos daquela vez mantiveram sua fama de bem educados aos quatros ventos pelos amigos e por ele mesmo apregoada!

Bem educados? Pudera: qual criança doida não se comportaria ante um pai fera desses...

Manué se lembra de coisas que não sei se é verdade ou fake News caipira! Acho que não me levaram pra essa festa...

(*) Auditor Fiscal aposentado

compartilhar notícia

Comentários

Gostaria de dar sua opinião sobre o assunto? Preencha os campos abaixo e participe da discussão