17/09/2025

Nota conjunta contra ameaças aos pilares da Reforma Tributária

As entidades signatárias manifestam preocupação com as propostas do Conselho Nacional da Advocacia Pública Fiscal (CONAP), que buscam ampliar competências das Procuradorias no âmbito do IBS e da CBS. Tais propostas representam desvio dos pilares constitucionais da Reforma Tributária (EC 132/2023 e LC 214/2025) e ameaçam a eficiência, a segurança jurídica e a governança do novo sistema.

Com base em dados e fundamentos jurídicos, esta nota reafirma que:

-         A constituição, o lançamento e a cobrança do crédito tributário são atribuições exclusivas das Administrações Tributárias, conforme a Constituição e a legislação vigente;

-         A centralização dessas funções na advocacia pública carece de amparo legal, contraria a lógica federativa e tende a ampliar custos e litigiosidade;

-         O Fórum das Procuradorias deve ter papel apenas consultivo e eventual, quando provocado, sem poder vinculante sobre as decisões do Comitê Gestor do IBS.

 

1.       Introdução

A FEBRAFITE (Associação Nacional de Fiscais de Tributos Estaduais), a FENAFIM (Federação Nacional dos Auditores e Fiscais de Tributos Municipais) e a ANAFISCO (Associação Nacional dos Auditores Fiscais de Tributos dos Municípios e Distrito Federal) vêm a público refutar os argumentos apresentados pelo Conselho Nacional da Advocacia Pública Fiscal (CONAP) em suas Notas Técnicas nº 001 e nº 002/2025.

Divulgadas em 15 de setembro de 2025, as referidas notas tratam, respectivamente, da inscrição e da cobrança da dívida ativa e da harmonização da interpretação do IBS e da CBS. Em ambas, a tônica é a mesma: reivindicar mais poderes às Procuradorias na governança do novo sistema tributário, em flagrante desrespeito às prerrogativas e atribuições das Administrações Tributárias.

Esse movimento, além de não encontrar respaldo na Emenda Constitucional nº 132/2023, compromete a coerência do modelo construído democraticamente ao longo da tramitação da reforma tributária. A proposta constitucional foi clara ao estabelecer que  a  centralidade  do  processo  de  fiscalização,  lançamento,  cobrança  e harmonização administrativa do IBS e da CBS cabe às administrações tributárias, cabendo ao CGIBS coordenar e integrar os entes federativos. A advocacia pública, por sua vez, possui um papel fundamental, mas distinto: a representação judicial e extrajudicial dos entes. Misturar essas atribuições é romper com o equilíbrio previsto na Constituição e abrir espaço para insegurança jurídica, sobreposição de funções e retrocessos institucionais.

2.       Aspectos relacionados à gestão e cobrança da dívida ativa

A primeira nota do CONAP defende que a inscrição em dívida ativa seja ato exclusivo das Procuradorias, sustentando que esse seria um controle de juridicidade indispensável e que sua transferência ao CGIBS representaria uma fusão indevida de funções. Também critica o prazo de até doze meses previsto para a cobrança administrativa, alegando que isso abriria uma janela de ineficiência e risco de fraude patrimonial.

Esse argumento, entretanto, é falho. Nem as premissas são verdadeiras, nem a conclusão se sustenta. No caso de delegação, a inscrição de valores em dívida ativa pelo CGIBS será feita obrigatoriamente nos termos da legislação de cada Estado ou Município titular do crédito, como deixa claro o §3º do art. 2º do relatório: “serão realizadas nos termos da legislação de cada ente federativo titular”. Ou seja, não há risco de ruptura normativa; a distância necessária para assegurar juridicidade continuará sendo aquela já prevista em cada legislação local, tal como ocorre hoje.

A alegada “fusão de funções” também não encontra respaldo legal. Hoje, cada Estado e Município realiza os lançamentos tributários previstos no CTN e, na sequência, inscreve os débitos em sua dívida ativa de acordo com legislação própria. A eventual delegação prevista no PLP não altera essa estrutura, apenas reproduz no âmbito do CGIBS o mesmo arranjo já existente. Portanto, a crítica de concentração de funções carece de base normativa.

O argumento de eficácia apresentado pelo CONAP também não se sustenta diante dos dados. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, responsável pela dívida ativa da União, recupera apenas cerca de 1% do estoque inscrito a cada ano. É um modelo ineficiente: recupera pouco, cancela muito, extingue muito. Esse dado evidencia que a narrativa de eficiência do modelo de cobrança centralizada pela advocacia pública não corresponde à realidade. Se a preocupação fosse, de fato, com a eficácia arrecadatória, o debate deveria ser orientado por alternativas que facilitem o cumprimento da obrigação tributária pelo contribuinte, e não para o fortalecimento de monopólios corporativos.

Além disso, é incorreto vincular o risco de fraude à administração tributária. Esse risco é próprio do comportamento do sonegador, não do auditor. Soa estranho que uma entidade de advocacia pública sugira que os agentes fiscais sejam fonte de vulnerabilidade, quando se sabe que 99% da arrecadação no Brasil não passa pela advocacia pública. A receita é garantida pelo cumprimento espontâneo dos contribuintes, pelo trabalho de fiscalização, pelo cruzamento de dados e pela cobrança administrativa conduzida diretamente pelas administrações tributárias, inclusive nos parcelamentos.

Os Estados e Municípios, aliás, demonstram relativa eficiência nessas cobranças administrativas, seja em débitos declarados e não pagos, seja em lançamentos de ofício. Em muitos casos, obtêm resultados mais expressivos do que aqueles alcançados por cobranças judiciais ou extrajudiciais conduzidas por advogados públicos. Isso reforça que a inscrição em dívida ativa não pode ser apresentada como função exclusiva da advocacia pública, sob pena de negar a realidade prática.

Quanto ao prazo de doze meses, longe de ser um risco, ele atende à intenção da reforma tributária de estimular a conformidade do contribuinte. Esse período evita o ajuizamento apressado de execuções fiscais, reduzindo custos com custas e sucumbência para os contribuintes e permitindo que soluções administrativas mais céleres e menos onerosas sejam tentadas antes do litígio judicial. É importante observar que, nos termos do art. 30, incisos I a III, da Lei nº 13.327/2016, a mera inscrição em dívida ativa pode ensejar honorários advocatícios, ainda que não haja cobrança judicial subsequente. Portanto, é natural que um prazo mais dilatado impacte a remuneração de diferentes carreiras, mas este não é um argumento que deva ser considerado em um debate republicano que mira a cobrança eficiente, equilibrada e financeiramente menos custosa para a sociedade.

Em síntese, a Nota 001/2025 constrói um raciocínio que não se ampara nem na Constituição, nem nos dados de arrecadação, nem na experiência prática. A inscrição em dívida ativa é parte do processo de gestão do crédito público, e não um monopólio jurídico da advocacia pública. A tentativa de qualificá-la dessa forma constitui um retrocesso institucional que enfraquece a integração entre administrações tributárias prevista na EC 132/2023, colide com o espírito da Reforma e desvia o sistema de sua finalidade de simplificação, eficiência e justiça fiscal.

3.       Aspectos relacionados à harmonização da interpretação do IBS e da CBS.

A segunda nota do CONAP trata da harmonização da interpretação do IBS e da CBS. Seu eixo central é a defesa de que o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias seja ouvido de forma obrigatória pelo Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias (CHAT), participando de todas as reuniões e emitindo manifestações prévias às decisões. O argumento é de que essa medida aumentaria a segurança jurídica e reduziria a litigiosidade.

Essa pretensão, contudo, desconsidera que a Lei Complementar nº 214/2025 já estabeleceu dois fóruns de harmonização distintos, com competências e atribuições próprias. O art. 321 atribui ao Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias a tarefa de uniformizar a regulamentação e a interpretação da legislação do IBS e da CBS, bem como prevenir litígios administrativos. Já o art. 322 disciplina o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias, restrito à esfera de atuação da advocacia pública. São instâncias diferentes, cada qual limitada ao âmbito de suas funções constitucionais.

De um lado, o gestor eleito pelo Executivo, com apoio técnico das administrações tributárias e dos auditores fiscais, comanda a política tributária e a gestão arrecadatória. De outro, os advogados públicos exercem suas funções no âmbito de sua competência constitucional: representação judicial e consultoria jurídica.

Transformar o Fórum das Procuradorias em instância obrigatória dentro do CHAT seria, portanto, criar um mecanismo de interferência que não encontra amparo na Constituição nem na LC nº 214/2025. O Fórum pode, sim, funcionar como órgão consultivo eventual, mas não deve ser erigido a instância obrigatória de controle sobre decisões técnicas e administrativas.

Além disso, a Nota do CONAP não resolve um ponto essencial: se as manifestações do Fórum fossem vinculantes, haveria usurpação de competências das administrações tributárias, retirando do CHAT sua função constitucional. Se fossem não vinculantes, a obrigatoriedade de consulta serviria apenas como filtro burocrático, alongando prazos sem ganho efetivo. A Nota também não apresenta qualquer análise de impacto sobre a quantidade de processos, custos e prazos adicionais que essa medida traria; uma omissão que enfraquece ainda mais o argumento de “segurança jurídica”.

A inadequação da proposta também se evidencia quando se observa a natureza das funções em discussão. A consulta fiscal sempre foi e continua sendo atividade privativa da Administração Tributária, que responde às indagações dos contribuintes sobre a interpretação da legislação aplicável a casos concretos. Trata-se de instrumento típico de orientação e prevenção de litígios, cuja eficácia depende justamente da vinculação à autoridade que exerce o lançamento e a fiscalização.

Pretender estender essa competência às Procuradorias é incompatível com o papel constitucional da advocacia pública, que é o de representar judicial e extrajudicialmente o ente federativo e prestar consultoria jurídica ao Poder Executivo. Mais ainda, a proposta esbarra no próprio Estatuto da Advocacia, que veda aos advogados públicos o exercício de funções de julgamento ou deliberação em órgãos administrativos. Em outras palavras: não há base jurídica para que procuradores assumam funções decisórias dentro da administração tributária, nem para que participem de colegiados cuja missão é uniformizar procedimentos de lançamento, cobrança e fiscalização.

Diante desse quadro, a tentativa do CONAP de reinserir a obrigatoriedade de participação das Procuradorias no CHAT é um retrocesso institucional. A solução adequada é manter a separação de funções e, se desejado, permitir apenas uma consulta facultativa, em caráter opinativo e não vinculante.

Assim se preserva a possibilidade de cooperação, sem criar sobreposição de competências nem enfraquecer a autonomia técnica das administrações tributárias.

Em síntese, a Nota 002/2025 do CONAP insiste em reabrir uma discussão já superada pelo Congresso. A harmonização do IBS e da CBS é tarefa das administrações tributárias, reconhecidas constitucionalmente como essenciais ao funcionamento do Estado (art. 37, XVIII e XXII, CF), cabendo às procuradorias cumprir seu papel próprio de representação judicial e consultoria. Pretender inverter essa lógica é um retrocesso que mina os pilares de simplicidade, eficiência e clareza institucional que a Reforma buscou consolidar.

4.       Conclusão

As Notas Técnicas nº 001 e nº 002/2025 do CONAP não oferecem soluções concretas para os desafios do novo sistema tributário. Pelo contrário, representam movimentos de expansão de competências que não encontram respaldo constitucional, fragilizam a governança do IBS e da CBS, aumentam a litigiosidade e reduzem a eficiência arrecadatória.

A posição da Febrafite, da Fenafim e da Anafisco – alinhada aos princípios da reforma tributária – é clara: cooperação entre carreiras é bem-vinda, mas não pode se converter em sobreposição de funções. A Emenda Constitucional nº 132/2023 foi explícita ao reservar às administrações tributárias a centralidade na constituição, fiscalização, cobrança e harmonização administrativa, cabendo à advocacia pública exercer seu papel próprio de representação judicial e consultoria.

Modificar essa divisão significaria um retrocesso: em vez de fortalecer a reforma tributária, produziria um sistema mais lento, mais complexo e mais sujeito a disputas internas. O caminho da simplicidade, da eficiência e da segurança jurídica exige respeitar a Constituição e preservar a autonomia técnica das administrações tributárias.

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