11/09/2025

IBS e auditoria contábil-digital

A lei do imposto de renda é um monte de bobagens. O governo não consegue arrecadar impostos legais com dinheiro ilegal

Al Capone (1899-1947)

 

Dedica-se este ensaio jurídico a Erivelto Antônio Lopes (in memoriam), do fisco estadual e a Naimar Mendanha Ramos (in memoriam), do fisco federal, cujos legados inspirarão as futuras gerações de auditores fiscais. “Os cobradores de impostos vos precederão no reino dos céus” (Mateus 21, 31).

Saldo credor de caixa, subfaturamento de operações, suprimento de caixa de origem não comprovada, passivo fictício, ativo oculto, depósito bancário sem origem comprovada, falta de emissão de documentação fiscal, inconsistência de estoque... correspondem às principais presunções de omissão de receita previstas nas legislações tributárias que, com base nos roteiros de Auditoria Contábil-Fiscal, desencadearão futuras ações fiscais no âmbito do Imposto sobre Bens e Serviços-IBS.

 

Follow the Money: o caso do monge e a lebre

Conta-se que um monge, no caminho da perfeição espiritual, deve observar os cães na caça a lebre, pois somente um dos cães vê a lebre e a persegue. Os demais cães, por verem aquele cão correr, correm também atrás dele, mas somente enquanto não se cansam. Quando se cansam, repentinamente retornam e, somente o primeiro cão, que realmente viu a lebre, continua a persegui-la até apanhá-la. Este não abandona a corrida por causa dos obstáculos até apanhar a lebre. Seguindo à risca esta lei da natureza, o monge atingirá o seu objetivo a nível espiritual.

Mutatis mutandis, na auditoria contábil-tributária, segue-se o mesmo padrão fiscal conhecido mundialmente pela expressão Follow the money (siga o dinheiro) e Cui Bono (a quem beneficia? Aquele que lucra com a sonegação foi quem a cometeu). Trata-se do modus operandi para rastrear fluxos financeiros com vistas a descobrir esquemas de sonegação fiscal, com possíveis reflexos na lavagem de dinheiro e outros delitos (evasão de divisas, corrupção, organização criminosa etc). É notório que dinheiro não tem cor nem cheiro (pecunia non olet), bem como não existe crime perfeito, tendo em vista que o capital sonegado, possivelmente, deixará rastros que identificarão o modo de operação da atividade sonegadora e seus responsáveis. 

 

Auditoria Fiscal & Auditoria Contábil: distinções

SPED é o leading case internacional de prestação de informações ao fisco. As empresas enquadradas no regime do Simples Nacional estão dispensadas da entrega do SPED (EFD/ECD). A título de ilustração, pode-se desmembrar o trabalho de auditoria em duas grandes áreas especializadas:  

Auditoria fiscal (SPED Fiscal - EFD ICMS/IPI) 

Principais roteiros de fiscalização: Auditoria de Estoques, de Crédito, de Apuração da Conta-Corrente do ICMS, de Substituição Tributária, dentre outros.

Auditoria contábil (SPED Contábil - ECD)

Principais roteiros de fiscalização: Auditoria de Caixa, de Bancos, de Disponibilidades, de Contas de Resultado, entre outros.

A principal diferença entre elas consiste no fato de que, na auditoria contábil (SPED Contábil - ECD), a ação fiscal terá como foco os registros contábeis (livros contábeis, demonstrativos financeiras, lançamentos, registros contábeis...), ao passo que, na auditoria fiscal (SPED Fiscal - EFD ICMS/IPI), a ação do fisco se reportará a informações tributárias propriamente ditas (livros fiscais: Entrada, Saída, Apuração do ICMS, Inventário, CIAP...).

Presunções de omissão de receita na seara fiscal

As principais presunções de omissão de receita previstas nas legislações tributária são: passivo fictício (manutenção, no passivo, de obrigações cuja exigibilidade não seja comprovada: dívida quitada ou inexistente), ativo oculto (criptomoeda, aquisição de bens do ativo, offshores em paraísos fiscais não declaradas), depósito bancário sem origem comprovada (titular, regularmente intimado não comprova, mediante documentação idônea, a origem desses recursos), falta de emissão de documentação fiscal (NFe, NFCe, CTe), inconsistência de estoque, saldo credor de caixa (caixa dois), subfaturamento (emissão de documento fiscal com valor inferior ao da operação), suprimento de caixa de origem não comprovada (simulação de entradas de recursos no caixa: adiantamento de sócios, mútuo), dentre outras.

 

Princípio da proporcionalidade no cálculo do imposto sonegado

Comprovado a ocorrência de presunções de omissão de receita, o preposto fiscal fica autorizado a apurar o quantum debeatur referente à omissão de operações de saídas de mercadorias. Todavia, caso a empresa comercialize mercadorias tributadas, isentas, não tributadas ou sujeitas ao regime de substituição tributária, dever-se-á cobrar tão-somente o valor das mercadorias tributadas, excluindo as demais (isentas/não tributadas/substituição tributária) no cálculo do imposto devido (ICMS), em homenagem ao princípio da equidade fiscal, não exigindo imposto sobre a totalidade das receitas de vendas das mercadorias, salvo se o contribuinte opere somente com mercadorias 100% tributadas.

 

Inversão do ônus da prova (Presunção juris tantum)

O modus operandi do sonegador envolve geralmente múltiplas transações comerciais e financeiras, utilizadas para fugir à tributação legal, permitindo a impunidade do infrator na seara fiscal. Por essa razão, a presunção legal de omissão de receitas tem o condão de inverter o ônus da prova, transferindo-o para o contribuinte, que pode refutá-lo através de provas idôneas e hábeis. Trata-se, portanto, de presunção juris tantum, isto é, relativa. Admite-se, pois, prova em contrário.

 

Ferramentas de auditoria contábil-fiscal

Atualmente, existe uma infinidade de técnicas de auditoria fiscal para detectar possíveis sinais de sonegação fiscal (red-flags), tais como: roteiros de caixa, amostragem aleatória, parâmetros estatísticos, circularização, cruzamento de bancos de dados (fiscal, bancário, comunicações, administradora de cartões, cartórios, Detran), perícia contábil, sinais exteriores de riqueza, ausência de segregação de funções, sistema de controle interno inadequado, alta rotatividade nas contas bancárias, conflito de interesse entre acionistas e administradores, histórico de denúncias, problemas relativos à publicação dos relatórios contábeis, rentabilidade abaixo da média do segmento de mercado, significativas operações realizadas sem licitação,  ajustes excessivos na contabilidade,  omissão na investigação de denúncias de subordinados ou colaboradores ou mesmo de stakeholders sobre possibilidade de fraudes, falta de comunicação aos órgãos competentes (CVM, Bolsa de Valores…) sobre possibilidades de risco de fraude, dentre outras.

Das ferramentas disponíveis para auditoria contábil-tributária, destacam-se:

 

Contagem lite (RFB)

Trata-se de uma ferramenta de fiscalizações de alta performance desenvolvida pela Receita Federal do Brasil (RFB) que auxilia os auditores fiscais na análise de dados fiscais e contábeis, com foco na identificação de indícios de fraudes, sonegação e irregularidades em declarações e escriturações digitais, como o SPED (Sistema Público de Escrituração Digital), NFe (Nota Fiscal eletrônica). Permite de forma ágil visualizar e processar grandes volumes de informações, incluindo contabilidade empresarial, extratos bancários (padrão BACEN) e cruzamentos de dados. Este software é utilizado internamente pela RFB e compartilhada gratuitamente com administrações tributárias estaduais e municipais.

Auditor eletrônico (SEF/MG)

Este aplicativo foi desenvolvido pela SEF/MG para auditoria fiscal-contábil. Visa otimizar as atividades de auditoria tributária, disponibilizando rotinas informatizadas que minimizem os procedimentos manuais e ampliem o tempo dedicado às atividades analíticas. Atualmente, 21 das 27 unidades da federação utilizam tal sistema de fiscalização.

 

SIMBA (Ministério Público Federal)

Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias - SIMBA, constitui numa ferramenta do Ministério Público Federal (MPF). Permite o cruzamento de dados, geração de relatórios e análise de dados bancários decorrentes de quebras de sigilo financeiro autorizadas judicialmente. Nos dias atuais, 80 entidades públicas utilizam esta ferramenta (MP, Polícia Civil, Tribunais de Contas, SEFAZ, TRT, CVM).

 

Lei de Benford

Poderosa ferramenta estatística que visa detectar possíveis irregularidades ou fraudes em bases de dados contábeis, haja vista que dados manipulados tendem a não seguir o padrão esperado pela Lei de Benford. 

 

Auditoria contábil em casos famosos

 

Al Capone (EUA)

Na década de 20, segundo o FBI, “Al Capone dominava um império do crime na Cidade dos Ventos: jogos de azar, prostituição, contrabando, suborno, tráfico de drogas, roubos, esquemas de ´proteção´ e assassinatos”. Ele também chefiava organização criminosa no comércio ilegal de bebidas alcoólicas durante a vigência da Lei Seca. Curiosamente, a justiça não conseguia julgá-lo, a Polícia não conseguia prendê-lo nem o Ministério Público denunciá-lo. Finalmente, o Departamento do Tesouro dos EUA constatou fortes evidências contábeis (prova de uma renda colossal: gastos extravagantes) para acusá-lo de sonegação fiscal do imposto de renda americano, bem como outros mafiosos.  Al Capone foi condenado por três crimes e duas contravenções, por falta de pagamento de imposto de renda entre 1925 e 1929. O juiz Wilkerson condenou Al Capone a cumprir 11 anos de prisão e a pagar US$ 80.000 em multas e custas judiciais.

 

Operação carbono oculto (Brasil)

Trata-se da maior operação contra o crime organizado da história do País (PCC). Deflagrada em oito Estados simultaneamente, conseguiu identificar e desarticular esquema bilionário de sonegação que envolvia fraude fiscal, adulteração de combustíveis e lavagem de dinheiro em postos de combustíveis. A operação revelou o uso de postos, fundos de investimento e fintechs para ocultar recursos ilícitos e blindar patrimônio ilícito, gerando um prejuízo de R$ 7,6 bilhões em impostos e movimentando R$ 52 bilhões mediante sistema complexo de empresas fictícias e transações financeiras.

 

Operação nobreza (Brasil)

A Operação Nobreza foi fruto de uma Força-Tarefa de combate à sonegação fiscal na Bahia, liderada pela Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia (SEFAZ-BA), em parceria com o Ministério Público da Bahia (MP-BA) e a Polícia Civil da Bahia (PC-BA). O foco da operação seria um grupo empresarial do segmento atacadista de produtos alimentícios, suspeito de sonegar mais de R$ 78 milhões em Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) ao Fisco estadual. De acordo com as investigações da SEFAZ-BA, o valor sonegado pode ser ainda maior, ultrapassando os R$ 500 milhões, considerando ramificações em outros estados, entre eles Paraná e São Paulo. As fraudes envolviam: aquisições interestaduais elevadas de mercadorias sem o pagamento antecipado do ICMS, saídas de mercadorias tributáveis sem emissão de documentos fiscais eletrônicos (NF-e), recolhimento de ICMS em valores pífios, incompatíveis com o volume de movimentações econômicas e constituição de empresas "laranjas" para blindar o patrimônio dos verdadeiros proprietários.

 

Considerações finais

Desde o desenvolvimento das partidas dobradas por frei Luca Pacioli (pai da contabilidade), o sistema contábil atual evoluiu significativamente, com a  incorporação de sistemas fiscais como o SPED (Sistema Público de Escrituração Digital), que inclui a ECD (Escrituração Contábil-Digital) e a EFD (Escrituração Fiscal-Digital), bem como a NF-e, NFCe, CTe, MDFe, NFS-e. Registros manuais foram substituídos por sistemas digitais, com novas tecnologias em processo de teste e implementadas paulatinamente (blockchain e inteligência artificial).

Com advento do IBS, surgem novos paradigmas na auditoria contábil-digital, impulsionados pela reforma tributária de consumo e pelo avanço tecnológico, com foco na inteligência fiscal e na conformidade espontânea.  Auditores Fiscais capacitam-se no uso de novas tecnologias e Inteligência Artificial na análise de informações em ambiente digital, otimizando a eficiência da fiscalização de tributos.

 As administrações tributárias se modernizam ao buscar uma atuação mais preventiva e orientativa, incentivando a regularização de pendências fiscais sob a responsabilidade dos contribuintes (Compliance), sob pena de instauração de ações fiscais coercitivas (Enforcement).

A excelência no planejamento de auditoria contábil-tributária permitiria, na vigência do IBS, a descoberta de fraudes instantaneamente, evidenciada nos papeis de trabalho dos auditores, proporcionando ganhos significativos de eficiência, qualidade e transparência tributária, com reflexos positivos no incremento da arrecadação.

Game over, Al Capone e demais sonegadores contumazes!

 

(*) Auditor Fiscal do Estado da Bahia, ex-Analista de Finanças do Tesouro Nacional (Brasília) – graduado em Ciências Contábeis (UnB) e em Direito (UDF) – Especialista em Direito Público (UnP).

E-mail:renatoa@sefaz.ba.gov.br

 

REFERÊNCIAS

https://www.fbi.gov/history/famous-cases/al-capone

https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/11/29/operacao-sonegacao-salvador.ghtml

https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2025/agosto/operacao-carbono-oculto-rrb-e-orgaos-parceiros-combatem-organizacao-responsavel-por-sonegacao-e-lavagem-de-dinheiro-no-setor-de-combustiveis

SILVA, Alexandre Alcantara da; CERQUERIA, Anderson Freitas de. Fraudes Contábeis: repercussões tributárias – enfoque no ICMS. Curitiba: Juruá, 2018.

 

compartilhar notícia

Comentários

Gostaria de dar sua opinião sobre o assunto? Preencha os campos abaixo e participe da discussão