08/09/2025

A enfermidade

            Manaoelito Souza

Era o ano de 1966. Eu não estava nada satisfeito com o emprego na mobiliaria dos Goldenstein. Longa jornada de trabalho, salário baixo (pouca coisa acima do mínimo, apenas em razão da convenção do sindicato dos comerciários), más condições de trabalho, pouca disponibilidade de tempo para melhor desenvolver os estudos (as notas boas me incentivavam e dedicar-me a eles), e nenhuma perspectiva de crescimento. Quanto a esse último fator, até mesmo em razão de o estabelecimento se tratar de um negócio sem grande expressão.

Em face dessa insatisfação, eu vivia imaginando formas de conseguir um outro trabalho. Cheguei a fazer insinuações junto a algumas agências bancárias onde a empresa mantinha contas. Imaginava que seus gerentes e chefes tinham o poder de admitir pessoas. Eram muitos as agências bancárias no trecho entre o Largo de São Bento e as Mercês: Banco da Lavoura de Minas Gerais; Português do Brasil; Mineiro da Produção; Comércio e Indústria de São Paulo; Comércio e Indústria de Minas Gerais; Econômico da Bahia; da Bahia; Irmãos Guimarães; Correia Ribeiro... Não era de se admirar essa constatação. Afinal, juntamente com a Rua Chile e a região do Comércio, o referido trecho da Av. 7 de Setembro, na época, constituíam o centro comercial e financeiro da Cidade.

Entre os meus colegas de escola, um se destacava pelo caráter brincalhão e perturbador. Era um dos mais jovens. Oscar Júlio Rocha Espinoza era mensageiro na Petrobrás e parecia que seus familiares tinham um certo prestígio na referida empresa. Um dia cheguei a lhe falar sobre se havia a possibilidade de tentar arranjar uma colocação lá, para mim. Na época, frise-se, não se exigia concursos públicos para o ingresso em empresas estatais, como era o caso da Petrobrás.

Outra tentativa foi graças ao meu amigo de infância em SAJ, Edmundo Melo, que, também, já morava em Salvador. Seu pai conhecia um deputado, de nome Hermógenes Príncipe, que, julgava-se, tinha influência junto aos Correios e Telégrafos. O pai desse meu amigo encaminhou uma solicitação ao deputado visando um emprego para o filho nos Correios, e eu tive a esperança de, também, conseguir alguma coisa por esse intermédio. Lembro-me que o pai do meu amigo chegou a nos mostrar um telegrama informando que sairia em breve a nomeação do meu amigo, mas isso nunca aconteceu. Não sei se o seu pai chegou a encaminhar o pedido em meu favor, mas que sonhei, também, com esse emprego, sonhei, sim!

Fiz outras tentativas de conseguir alguma outra ocupação. Uma delas foi me inscrever no processo de seleção para a Escola de Sargento das Armas (ESA), uma escola muito referenciada, mantida pelo Exército, em Três Corações (MG). Na época eu estava no 3º ano do ginásio, escolaridade insuficiente para o conteúdo exigido pela seleção, por isso não passei na seleção.

Outra foi um concurso para o cargo de escriturário do Departamento de Estradas e Rodagens do Estado da Bahia (DERBA). Nesse certame cheguei a ser aprovado, porém no 29º lugar, e foram convocados apenas 25 candidatos. Vivi por muito tempo a esperança de ser convocado adicionalmente, mas isso nunca aconteceu.

Outra opção de sair da mobiliaria foi tentar o Serviço Militar, quando chegou a idade própria para isso (entre 18 e 19 anos). Cheguei a ser selecionado para servir na Marinha, mas fui dissuadido a desistir, por José Gomes Brito, meu ex-colega do ICEIA, amigo até hoje, que havia tido a experiência de servir naquela Força, e considerava que fora uma perda de tempo.   

Aí chegou o ano de 1966, mencionado na inicial dessa anotação. E, com ele, um concurso público para escriturário do Município do Salvador. Submeti-me a ele e logrei aprovação, não me lembro em qual colocação. Não preciso relatar a satisfação que tive com essa aprovação. Afinal iria me livrar do trabalho pouco gratificante na mobiliaria dos Goldenstein. Creio que essa satisfação só foi ultrapassada quando fui aprovado para o curso de Engenharia Civil da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, alguns anos depois.

Vieram os exames médicos para a admissão no tão sonhado novo trabalho. E aí veio o susto: os exames indicaram que eu estava com uma “Tuberculose Pulmonar Moderada” (esse foi o diagnóstico).

Nada de admirar, aliás, para uma pessoa que estava passando por um quadro de tosse seca, febre quase diária, perda de apetite e de peso. Mas eu estava longe de imaginar que estivesse acometido de uma doença tão grave. Pensei que iria morrer.

Creio que a doença ocorreu pelas péssimas condições alimentares que eu vivia na época. Saía do trabalho e seguia direto para a escola, onde permanecia até mais tarde da noite, quase sempre sem condições financeiras para fazer um pequeno lanche. Só ao chegar em casa, depois das 22h, ingeria algum tipo de alimentação. O sono também era pouco para uma pessoa jovem, recém-saída da adolescência. No dia seguinte haveria de acordar cedo, para o batente na mobiliaria.

Um colega do ICEIA, Severiano Alves de Souza, amigo até hoje, na época trabalhava na Reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBa), e conseguiu que eu fizesse um exame de raio X no Serviço Médico da Universidade, que confirmou o diagnóstico dos exames da Prefeitura de Salvador. Antes mesmo, porém, dele me dar notícia da confirmação, já havia se articulado com um pneumologista da Universidade, seu conhecido, para me ajudar no tratamento. Esse apoio foi uma dádiva, pois não fiquei a mercê do tratamento através do sistema público de saúde. E, registre-se, não gastei um centavo com esse profissional. Até mesmo porque não tinha condições financeiras para pagar seus honorários. Seu consultório localizava-se na Rua Chile, esquina do Pau da Bandeira, em imóvel hoje integrante do patrimônio da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, que, coincidentemente, quase 50 anos depois, vim a administrar, na condição de Superintendente de Serviços Corporativos da instituição.

Passado o susto inicial e as providências de Severiano, pensei no que fazer em relação ao concurso em que fora aprovado. Não me lembro se por conta própria, ou aconselhado por alguém, dirigi-me ao órgão de pessoal da Prefeitura de Salvador e, alegando uma doença qualquer (a tuberculose era estigmatizada, tanto que, para percepção do meu auxílio-doença, tive que, compulsoriamente, outorgar uma procuração a um outro colega do ICEIA, Murilo Alves das Neves), perguntei se poderia solicitar a prorrogação de posse. Para minha surpresa, fui informado que sim. Ato contínuo, fiz o requerimento exigido, solicitando a prorrogação por 180 dias, e fui cuidar do tratamento.

Passados 90 dias de intenso tratamento, o Dr. Péricles Guimarães (esse era o nome do pneumologista), informou-me que, se eu quisesse, poderia assumir a nova função, principalmente considerando que a jornada de trabalho era de apenas 6 horas por dia. Segundo ele, isso seria até bom para minha cabeça. Iria contribuir para o meu restabelecimento. Era outubro de 1966.

E assim foi feito. Assumi a função que iria marcar o início de minha carreira na área pública. Estava longe de imaginar que isso, no futuro, iria me trazer grandes realizações no campo profissional.

 

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