13/06/2023

Transferências de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa. Análise do projeto de lei complementar aprovado pelo Senado Federal.

 

Tolstoi Seara Nolasco(*)

 

 

Marco Antônio Porto Carmo(**)

 

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, decidiu pela inconstitucionalidade do dispositivo da Lei Kandir (LC 87/96) que possibilitava a cobrança do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (ICMS) nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte (Tema STF nº 1.099).

Realizado em sessão virtual, encerrada em 17/04/2023, o julgamento decorreu da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 49, através da qual o governo do Rio Grande do Norte tentava a manutenção da cobrança firmada na legislação vigente. No entanto, conforme estabelecido na modulação feita pela Suprema Corte, a decisão somente terá eficácia em 2024.

Em paralelo, o Senado Federal, no último dia 09 de maio, aprovou o PLS 332/2018, que propõe alteração à Lei Complementar 87/96. Já naquele momento da propositura, antes mesmo da decisão final do STF acima mencionada, a mudança legislativa, segundo exposto na Justificação do PLS, fundou-se na controvérsia estabelecida sobre a incidência do ICMS nas operações de transferências de mercadorias, ou seja, sem mudança de titularidade. Nessa justificativa é destacado, justamente, o entendimento que vinha sendo fixado em decisões dos tribunais superiores sobre a matéria:

A jurisprudência do STF também é firme na linha de que não constitui fato gerador idôneo a atrair a incidência de ICMS a transferência de mercadorias entre estabelecimentos distintos do mesmo titular, ainda que situados em unidades federativas diversas (cf. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 1.063.312/RS, Relator Ministro Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 11/12/2017).[1]

Importante frisar que o Conselho de Fazenda do Estado da Bahia – CONSEF, mediante edição da Súmula nº 08, já reconhece a não incidência do ICMS na circulação interna de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular.

O tema que mais se apresenta controverso, sem dúvida, mesmo após estabelecida pelo STF a não tributação sobre os deslocamentos de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, relaciona-se ao crédito fiscal oriundo de operações anteriores às transferências. A decisão que fulminou a incidência do ICMS nessas operações impõe aos estados a obrigatoriedade de definir como se dará o aproveitamento desse direito:

O Tribunal, por maioria, julgou procedentes os presentes embargos para modular os efeitos da decisão a fim de que tenha eficácia pró-futuro a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito, e, exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos, concluindo, ao final, por conhecer dos embargos e dar-lhes parcial provimento para declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do art. 11, § 3º, II, da Lei Complementar nº 87/1996, excluindo do seu âmbito de incidência apenas a hipótese de cobrança do ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo titular. Tudo nos termos do voto do Relator, vencidos, em parte, o Ministros Dias Toffoli (ausente ocasional).[2]

Sobre a questão ora em exame, parece-nos inexistir maiores problemas a respeito das operações de transferências dentro da própria unidade federada. Indiscutível o direito ao creditamento do imposto incidente nas etapas anteriores, pois, estabelecendo como premissa que as mercadorias ou insumos transferidos sejam objetos de saídas posteriores sujeitas à tributação, não se visualiza nenhum impedimento ao uso do crédito fiscal nessa hipótese.

Não permitir o abatimento do imposto que incidiu no momento das aquisições dos itens que venham a ser transferidos, uma vez que serão objetos de saídas posteriores tributadas, acarretaria em desconsideração plena do princípio da não cumulatividade.

Assim, o estabelecimento que efetuar transferências internas de mercadorias tem o direito a utilizar como crédito em sua conta corrente fiscal, o valor do imposto pago nas aquisições dessas mercadorias que venham a ser transferidas. Inclusive, há tratamento legal previsto nas legislações estaduais, que pode ser adequado para os casos excepcionais. Admitindo-se uma situação onde determinada empresa concentre suas aquisições em estabelecimento que somente efetue saídas destinadas a outro de mesma titularidade, haveria, por consequência da não incidência, acumulação de créditos fiscais. Para tanto, a exemplo da legislação baiana, bastaria estabelecer a previsibilidade de manutenção prevista no inc. II do § 4º, do art. 26 da Lei 7.01496.

Embora partindo-se de uma visão sistémica, reste desnecessário, por força da definição de não incidência nas transferências, para efeito de maior clareza, atendendo ao decidido no STF, os estados devem regulamentar a forma de uso do crédito fiscal correspondente.

Como questionamentos maiores residiam sobre as operações interestaduais, o Senado Federal, diante da jurisprudência sobre a questão, acrescentou os parágrafos 4º e 5º, e incisos ao artigo 12 da LC 87/96, partindo do pressuposto da necessidade da regulamentação do direito ao crédito, conforme exposto pelo Senador Irajá Abreu (PSD-TO), Relator do PLS 332/2018, quando da análise da Emenda nº 1-PLEN, da Senadora Kátia Abreu, ao Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 332, de 2018 – Complementar:

Conforme destacado no relatório apresentado no dia 19 de novembro de 2019, trata-se de aperfeiçoamento importante do projeto, com vistas a evitar a anulação de créditos tributários relacionados ao bem objeto da referida transferência, o que implicaria cumulatividade do ICMS, aspecto não desejável em relação à cobrança desse imposto.[3]

A proposição legislativa do Senado Federal ficou assim estabelecida:

Art. 12.      .............................................................................
I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte;
............................................................................................
§4° Não se considera ocorrido o fato gerador do imposto na saída de mercadoria de estabelecimento para outro de mesma titularidade, mantendo-se o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte, inclusive em nas hipóteses de transferências interestaduais em que os créditos serão assegurados:
I – pela Unidade Federada de destino, por meio de transferência de crédito, limitados aos percentuais estabelecidos nos termos do inciso IV, § 2°, do art. 155, da Constituição Federal, aplicados sobre o valor atribuído à operação de transferência realizada;
II – pela Unidade Federada de origem, em caso de diferença positiva entre os créditos pertinentes às operações e prestações anteriores e o transferido na forma do inciso I deste parágrafo.
§5º Alternativamente ao disposto no § 4°deste artigo, por opção do contribuinte, a transferência de mercadoria para estabelecimento pertencente ao mesmo titular, poderá ser equiparada a uma operação sujeita à ocorrência do fato gerador de imposto, hipótese em que serão observadas:
I - nas operações internas, as alíquotas estabelecidas na legislação;
II- nas operações interestaduais, as alíquotas fixadas nos termos do inciso IV, § 2°, do art. 155, da Constituição Federal.

A nosso sentir, a propositura legislativa peca por conter redação que deixa margem a interpretações divergentes. O texto aprovado no plenário do Senado, traz no inciso I do § 4º, do art. 12, no mínimo, inusitada definição de base imponível para mensuração do valor do crédito fiscal a ser transferido. Ao estabelecer que o crédito será limitado à aplicação dos percentuais estabelecidos no inciso IV do § 2º do art. 155 da Constituição Federal sobre o “valor atribuído à operação de transferência realizada”, cria, a nosso ver, uma lacuna legislativa, por não regular detalhadamente a matéria ou por imprevisibilidade.

A expressão “valor atribuído”, nada regula ou nada prevê, a não ser que se deva contextualizar essa expressão com outras parcelas do texto legal, a exemplo do inc. I do § 4ª do art. 13 da LC 87/96, ou ainda, a previsão contida no seu art. 19 do mesmo diploma legal. Nesse contexto interpretativo o valor do crédito a ser transferido estará atrelado ao tipo de operação objeto da transferência a ser realizada, envolvendo mercadorias produzidas por estabelecimentos industriais, empresa comercial ou produtor primário. A priori, não há outra inferência razoável: a) ou a proposta legislativa deixa em aberto a definição de qual será a base imponível para a mensuração do crédito fiscal a ser transferido; ou, b) se deva conciliar o texto proposto com outros dispositivos da própria Lei Complementar, a fim de se prescrever a conduta aplicada à espécie.

A proposta de alteração legislativa contém outra matéria controvertida: a faculdade de tributar ou não as operações de transferência, conforme disposto no § 5º do art. 12.

Toda construção doutrinária e jurisprudencial a respeito da ocorrência de determinado fato que venha a dar ensejo ao nascimento da obrigação tributária, reside, em apertada síntese, de sua perfeita adequação à norma. Ou seja, ocorrendo o fato com a plenitude de seus contornos previsto na norma tributária, surge de um lado o direito do sujeito ativo em receber o tributo, e de outo, a obrigação do sujeito passivo em pagá-lo. A obrigação tributária que surge, por mandamento legal, aliás, com disposições expressas contidas nos art. 3º e arts. 113 a 118 do CTN, revestem-se de compulsoriedade.

Ademais, o ente tributante necessita de previsibilidade de receita para não apenas atender a obrigatoriedade legal de estabelecer o respectivo orçamento, mas, para adotar o adequado planejamento de execução de políticas públicas visando cumprir suas obrigações constitucionalmente estabelecidas.

Sobre previsibilidade de receita, a Lei Complementar 101/2000, intitulada Lei de Responsabilidade Fiscal, entre outros mandamentos, exige:

Art. 11.Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação.
(...);
Art. 12. As previsões de receita observarão as normas técnicas e legais, considerarão os efeitos das alterações na legislação, da variação do índice de preços, do crescimento econômico ou de qualquer outro fator relevante e serão acompanhadas de demonstrativo de sua evolução nos últimos três anos, da projeção para os dois seguintes àquele a que se referirem, e da metodologia de cálculo e premissas utilizadas.

A leitura dos citados dispositivos é suficiente para evidenciar a flagrante contradição entre os dois diplomas legais, diga-se, de mesma hierarquia. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige planejamento fixado para o campo das receitas sobre base mensurável, elaborada de forma, digamos, mais objetivamente possível. De maneira totalmente oposta, a proposta de alteração legislativa aprovada no Senado Federal para a LC 87/96, contém um aspecto inovador e totalmente estranho à matéria de definição de incidência tributária, o elemento volitivo do sujeito, que, portanto, somente será passivo se assim desejar.

Cabe ainda destacar que o PLS 332/2018 aprovado no Senado foi encaminhado à Câmara dos Deputados para a continuidade do processo legislativo que é bicameral por disposição de nossa Constituição. Poderá haver alterações no projeto de lei complementar através de emendas dos deputados, situação em que haverá o retorno do texto para o Senado. E depois da conclusão dos tramites nas casas legislativas, a matéria dependerá de sanção do Presidente da República, que poderá apresentar veto no todo ou em parte do projeto.

A título de conclusão podemos declarar que se aprovado texto alterador da LC 87/96 conforme proposto no PLS 332 do Senado Federal:

1 – o valor do crédito fiscal a ser transferido de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte, calculado sobre o valor da saída por transferência, que poderá ser tributada ou não pelo contribuinte de acordo com o projeto, deverá obedecer os limites das alíquotas fixadas nos termos da Constituição para a respectiva operação (art. 155, § 2º, inc. IV, da CF/1988);

2 – o valor de transferência, ou seja, a base imponível sobre o qual incidirá a alíquota para o cálculo do crédito transferível, no nosso entender, seguirá a metodologia de cálculo estabelecida no art. 13, § 4º, incisos I, II e III, da LC 87/96, a depender do caso concreto, adotando-se aqui a intepretação sistemática que compatibiliza todas as normas que compõem o mesmo texto legal;

3 – a possibilidade do contribuinte tributar ou não a operação de transferência é no mínimo esdrúxula e em nosso entender deverá ser revista na Câmara dos Deputados, de forma a se afastar a possibilidade da tributação ficar a critério da vontade do sujeito passivo, fato sem precedentes em nosso ordenamento jurídico.

(*) Diretor de Assuntos Fiscais e Tributários do IAF 
(**) Vice Diretor de Assuntos Fiscais e Tributários do IAF 
[1] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7754869&ts=1571780345564&disposition=inline
[2] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5257024
[3] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9135911&ts=1685470853825&disposition=inline&_gl=1*vuikjg*_ga*OTEyMzI4NDM2LjE2Njg2MjE3Mzk.*_ga_CW3ZH25XMK*MTY4NjA4MDIxNi41LjEuMTY4NjA4MDYwNy4wLjAuMA..
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