12/07/2023

Impactos da Reforma Tributária para o brasileiro: O “Capiroto” se esconde nos detalhes – Parte 1

Vladimir Miranda Morgado (*)

Introdução

“Capiroto”, no norte do Brasil, é sinônimo de diabo, demônio. Não à toa preferimos usar este termo, na primeira parte da presente reflexão. O sentido é mostrar que a reforma tributária, em certa medida, afetará mais as populações nortistas do que sulistas, sem com isso querer demonstrar divisionismos, mas apenas atestar que, por questões de logística, em face da tributação do valor adicionado, os industriais e grandes atacadistas preferirão ficar nos maiores centros consumidores, de modo que, pelo menos no item frete, os bens e produtos tenderão a chegar mais caros pelas bandas de cá.

Neste trabalho não haverá grandes preocupações em aprofundar as questões técnico-jurídicas extraídas da proposta de reforma tributária – e elas serão muitas por exibir, notadamente o comprometimento do federalismo de equilíbrio.

O objetivo inicial será apresentar um olhar mais acurado de um assalariado brasileiro que possui militância de 35 anos na área tributária, acerca do texto constitucional da reforma tributária e suas novidades implantadas no ordenamento jurídico brasileiro. E terá especificamente o intuito de apontar eventuais potencialidades de encarecimento da vida do trabalhador brasileiro, não só os “remediados”, mas também os mais pobres, apesar do discurso de que os menos favorecidos serão “poupados” da reforma tributária.

Não se deseja com este estudo preliminar assacar críticas contra o novo sistema proposto para o setor do consumo. Ao contrário: somos da opinião de que a reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados contém um modelo avançado da tributação sobre o valor adicionado, copiado de outros países, de formatação dual e competência bipartida entre Estados e Municípios, depois das customizações e acolhimentos de algumas reivindicações de setores econômicos influentes.

A PEC 45/2019, ora a caminho para apreciação no Senado, alterou praticamente todos os tributos de competência estadual e municipal, inclusive, neste último caso, nas contribuições para custeio do serviço da iluminação pública. Só o ITIV ficou sem ser retocado. Além, é claro, de três tributos federais – PIS, COFINS e IPI, reunidos numa só exação, isto é, a CBS, e a junção do ICMS e ISS no IBS, sem falar na criação de um imposto seletivo, de externalidade negativa, visando inibir o consumo de bens e mercadorias prejudiciais à saúde e ao meio-ambiente. Por fim, nos estertores da sessão congressual, encartou-se na PEC (art. 20) a possibilidade de Estados criarem uma contribuição, a recair sobre produto primários e semielaborados, para investimentos de obras de infraestrutura e habitação.

Vamos às mudanças – não todas, claro - e potenciais reflexos econômicos:

  1. Contribuição para custeio do serviço de iluminação pública.

Sucessora da taxa de iluminação pública, considerada inconstitucional pelo STF, a contribuição para custeio do serviço de iluminação pública hoje tem base de incidência no custeio do serviço de iluminação pública. Por idiossincrasia do legislador constitucional, este tributo vem cobrado na fatura de consumo da energia elétrica, conforme art. 149-A e seu parágrafo único.

O propositor constitucional aumentou consideravelmente a base de subsunção desse tributo. É que, além do custeio, agora serão oferecidas à incidência a expansão e a melhoria do serviço, o que, fatalmente, aumentará o valor da contribuição, devida por parcela significativa da população brasileira. Se já sofremos com os constantes aumentos dos preços cobrados pelo consumo da energia elétrica, fincados em rodízio de bandeiras de cores diferentes, agora teremos que suportar a elevação do tributo, cujos números de justificação poderão constituir um enigma, ou, no mínimo, uma inevidência. Se, de certa forma, de soslaio, tais itens de despesa pública já eram na prática cobrados, teremos agora o beneplácito constitucional.

  1. ITCMD

Conhecido popularmente como o “imposto sobre heranças”, em verdade este tributo incide sobre as transmissões causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos, tem competência estadual e via resolução senatorial admite a alíquota máxima de 8%.

A despeito de surgirem novas regras relacionadas com as transmissões com bens e direitos envolvendo o exterior, com vistas a sanar conflitos de competência entre os Estados, merecedoras de estudo apartado, algumas novidades foram lançadas que podem afetar o bolso do cidadão.

Primeiro ficou sacramentado que o tributo será progressivo em razão do valor sucedido ou doado. A experiência internacional acusa alíquotas elevadas, chegando a níveis de 40% a 60% nas transmissões de grande vulto (EUA é um exemplo), de modo que, teoricamente, poderemos ter patamares semelhantes no Brasil, conforme se extrai subliminarmente de declarações de políticos de relevo. A questão preocupante é saber o que irá ser considerado como transmissão de valor significativo, de sorte que patrimônios de valor mediano poderão ser atingidos pela mão forte do tributador. Não se pode esquecer que, não obstante a progressividade prevista, a carga incidente pode ser em tal intensidade descalibrada que poderá beirar o confisco, porquanto haverá o perigo de, ao cabo da sucessão por duas ou três gerações, todo o patrimônio originalmente transmitido migrar para os cofres públicos.

  1. IPVA

Exação que entrou no lugar da Taxa Rodoviária Única (TRU), mas com claros propósitos de hipertrofiar seu campo de atuação, o IPVA hoje não pode incidir sobre veículos automotores aquáticos e aéreos, conforme decisão do STF muito conhecida no meio jurídico (v. REs 255.111 e 525.382).

A proposta constitucional sob mira traz para dentro deste imposto estadual a propriedade de veículos automotores aéreos e aquáticos, com previsão de imunidades específicas. Induvidosamente, a medida expressa o sentimento de justiça tributária, quase um clamor da sociedade brasileira, que via passarem intactos de tributação os proprietários de jatinhos particulares e embarcações de alto luxo. Já era tempo de haver tal previsão na Constituição Federal.

Todavia, os muito ricos, ao pagarem o IPVA sobre os seus veículos automotores, apenas terão um pequeno dissabor econômico ao recolher o gravame, tamanha a sua fortuna, até porque a tributação sobre o patrimônio, principiologicamente, não deve exibir pesadas alíquotas. O milionário apenas terá uma despesa anual que, relativamente, equivalerá aos gastos de um supermercado mensal suportado por um cidadão de poder aquisitivo médio. O imposto sobre grandes fortunas, por outro lado, continua sem instituição. Mas, repetimos, a justiça tributária estará sendo feita, ao menos em certa medida.

Contudo, o foco do presente trabalho é outro, não custa nada relembrar, vale dizer, saber quais os riscos de aumento das despesas que suportará a maioria do povo brasileiro. Sobre este imposto, a novidade nesse prisma é que agora haverá alíquotas diferenciadas não só de acordo com o tipo e utilização do veículo, mas também em função do seu valor e do seu impacto ambiental.

Isto significa dizer, em primeiro lugar, que quanto mais caro o bem, maior será a alíquota, aplicada linearmente e não progressivamente. Embora o ideal fosse a progressividade, fato é que os veículos de maior valor serão taxados com alíquotas mais altas. Não vemos irrazoabilidade na medida, se apenas os carros de alto luxo forem objeto da tributação majorada. Resta saber o que o legislador infraconstitucional vai chamar de carro de luxo e carro popular, para fins de adoção de alíquotas menores para este último e bem maiores para o primeiro.

Outro ponto de inflexão é saber qual será a alíquota para veículos automotores de impacto ambiental. Sabe-se que hoje os carros de longo tempo de funcionamento costumam ser contemplados pelos Estados com normas de desoneração, a isenção a mais utilizada. Não só porque já houve a tributação do IPVA por extenso período de tempo - o que poderia traduzir confisco se houvesse a continuação da cobrança -, como também tais veículos têm como proprietários pessoas com menor poder aquisitivo, usados como instrumento de trabalho e locomoção. Este cenário parece querer mudar. Tais carros são altamente poluidores, com motorizações obsoletas, movidos a combustíveis fósseis, no mais das vezes. Ademais, o futuro muito próximo aponta para a substituição da frota por veículos movimentados a energia elétrica. Há notícias, diga-se de passagem, que uma grande montadora chinesa pretende se instalar na Bahia com este padrão automotivo.

Portanto, não seria exagerado admitir a possibilidade de carros usados por muitos anos e movidos a gasolina, por exemplo, passarem de um extremo a outro, de propriedade desonerada para sobretaxados, exatamente em virtude da sua capacidade poluente. E isto, obviamente, vai dificultar a vida do trabalhador brasileiro. Resta saber se haverá do governo disposição para financiar em massa proprietários que estejam nesta condição, similar ao que acontece atualmente com os proprietários de veículos que possuam problemas de locomoção.

Considerações finais.

Tais mudanças, registre-se logo, passarão a produzir efeitos na data da publicação da PEC 45, salvo eventuais casos de eficácia constitucional contida ou limitada.

Na parte 2, veremos que potenciais impactos poderão ocorrer no IPTU, na contribuição estadual e no novo imposto seletivo, este último de competência federal.

Fazemos questão de reafirmar que não nos posicionamos contrários à reforma tributária ora em tramitação no Congresso Nacional. Mas precisamos ficar atentos, alertas às modificações de mérito e quantificações de carga que virão no seio das leis infraconstitucionais, cujos textos, não temos dúvidas, já estão com seu conteúdo definido, ou quase definido, em condições de ser apresentado para a sociedade brasileira, pelo menos na sua versão primeira. É o momento das entidades civis organizadas exercerem diligentemente o seu papel.

(*) Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia, membro do Conselho Estadual da Fazenda (Consef), Doutor em Direito pela UAL/UFPE, Autor do livro "Fisco e Contribuinte no PAF", Ex-Diretor Jurídico do IAF Sindical.

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