Como ganhei fama de mentiroso na USP
Aconteceu em 1985. Eu era professor de Engenharia, recém-concursado na Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS. Fui selecionado pela prestigiosa Universidade de São Paulo - USP para cursar uma pós-graduação lato sensu em Engenharia de Estruturas, com ênfase em Métodos Computacionais e Metodologia do Ensino Superior. A turma foi composta por 30 pós-graduandos e, pelas características do curso, 26 eram professores de Engenharia das várias universidades do Brasil.
O curso era presencial (campus da Escola de Engenharia de São Carlos/SP), intensivo e modular, e o primeiro módulo era da matéria “Metodologia do Ensino Superior”, com 60 horas.
Na primeira aula, o professor distribuiu a turma em círculo e, buscando a integração do grupo, pediu para que cada um de nós se apresentasse, o que foi feito em clima de grande euforia. Em seguida teceu comentários sobre a preocupação com o enorme índice de evasão nos cursos de Engenharia em todo o país. Pediu opiniões e levantou um questionamento: não estariam os cursos sendo muito teóricos e dissociados da vivência real do engenheiro? Em seguida, desafiou: como ele não era engenheiro, era da área de “humanas”, gostaria de ouvir alguns relatos onde, em nosso dia-a-dia, algum princípio de Engenharia teria tido aplicação prática para alguns de nós. Foi aí que tudo começou...
Tomei a iniciativa e contei minha história: Eu era professor da UEFS e, ao mesmo tempo, dono de construtora e, como tal, participava de licitações públicas, principalmente em Salvador/Ba.
Em uma dessas ocasiões, dirigi-me de Feira de Santana ao Centro Administrativo da Bahia – CAB, para participar de mais uma “tomada de preços” para uma determinada obra do Estado. Meu carro era um PASSAT da VW com 5 anos de uso, mas com um importante detalhe: era movido a gás de cozinha. Isso mesmo! Na década de 1980, no interior do Nordeste, muitos carros foram adaptados para esse “inovador” combustível, o que proporcionava uma enorme economia para o corajoso e infrator usuário (eu já havia comprado o carro com essa adaptação...). Só havia um problema: além de ter que driblar a fiscalização de trânsito, o carro ficava “ronceiro”(com pouca força no motor) e, se “apertássemos o pé” (no acelerador, naturalmente...), o motor esquentava e corria-se o risco de “empenar o cabeçote”, como todo bom motorista sabe. Ocorre que meu tempo estava exíguo e “apertar o pé” foi exatamente o que fiz! Com cerca de 30 minutos de jornada, o susto: a água do radiador estava evaporando pelo capô do carro e, como sabemos, quando isso ocorre temos que parar imediatamente e deixar o motor “esfriar”. Mas houve um agravante: quando abri a “tampa do radiador”, a água muito quente “saltou aos borbulhões” e quase toda se perdeu precisando ser completada. Era um período chuvoso e havia grandes poças de água ao longo do acostamento da BR 324, entremeadas por sobras de material argiloso da recém-duplicada rodovia, e que formava alguns “montões” aparentemente secos e firmes. Eu estava levando “um carona” e ele, diligentemente, conseguiu encontrar uma garrafa tipo PET nas imediações. Munido de tão importante vasilhame, busquei uma grande poça de água circundada com o que parecia ser uma ótima base de apoio; e encontrava-se a cerca de um metro do acostamento; um bom e calculado pulo para aquela “base” parecia bastar; e foi o que fiz! “Pluft”! Caí em uma cilada...na verdade só a superfície da tal “base” estava seca. Todo o restante do “montão” era de argila inteiramente saturada (com água, muita água...). Isso me fez afundar, lentamente mas de forma contínua; em pouco tempo eu já tinha afundado até à altura da cintura, enquanto o “meu carona” tentava buscar ajuda com os que velozmente trafegavam pela rodovia (sem sucesso...). Bateu o desespero; a conta era simples: se aquele “montão” de argila saturada fosse superior à minha altura, em pouco tempo eu seria um homem morto. Foi quando um lampejo de lucidez me ocorreu e eu disse a mim mesmo: “calma, Geraldo, calma; haja como um engenheiro...”; e foi o que fiz, e racionalizei a partir de um princípio simples de Engenharia: “por que estou afundando?”; “porque a tensão admissível da argila saturada (a tensão que ela suporta) é muito baixa, muito inferior ao meu peso dividido pela área formada pelos meus pés” (nota: na Engenharia, a tensão de compressão é equivalente à pressão, que é a Força dividida pela Área onde ela está sendo aplicada); “qual a solução, então?”; “diminuir a tensão, trazê-la para o nível admissível (suportável) pela argila saturada”; “e como se faz isto?”; “como o meu peso não vai mudar, preciso aumentar a área onde ele está se apoiando, reduzindo assim a tensão”; e foi o que fiz: tirei a camisa e deitei o tronco sobre a argila saturada, aumentando enormemente a área que suportava o peso do meu corpo; parei imediatamente de afundar; esta área de apoio aumentada foi inclusive suficiente para suportar a força que fiz para “desatolar” as pernas e os pés; a partir daí, saí “rolando” sobre o “montão” de argila até chegar no acostamento (todo enlameado, como era de se esperar)!
Quando terminei essa narrativa, fui efusivamente aplaudido por toda a turma, mas um “gaiato” gritou: “É mentira Terta?” (certamente todos se lembram desse famoso bordão do icônico mentiroso Pantaleão, personagem inesquecível criado por Chico Anísio...). Ninguém mais daquela turma teve coragem de contar uma história que aludisse a uma aplicação da Engenharia. Acrescentei que na saída da lama, um dos meus sapatos (um tênis, na verdade) ficou soterrado e que guardei o outro, “embalsamado” pela argila, por muito tempo, como lembrança e prova do inusitado acontecimento. Mas, o “bordão” de Pantaleão parece que foi mais forte e foi assim que ganhei fama de mentiroso na USP.
(*) Auditor Fiscal aposentado
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