27/03/2024

Reforma Tributária de 2023. Parte 3. Sistema Tributário Nacional: Novos princípios constitucionalizados

Introdução

Vale inicialmente recapitular que, dentro da teoria clássica de conceituação de princípios e regras, aqueles são mais importantes do que estas, visto que normas produzidas sem observância de um princípio tendem a resvalar em inconstitucionalidades ou ilegalidades.

A propósito deste tema, não podemos deixar de citar a obra magistral de Humberto Ávila[1] que, ao contrário, fundamenta serem as regras mais relevantes do que os princípios, a serem aplicadas primordial e especificadamente aos casos concretos.

De todo modo, na linha do primeiro pensamento mencionado, os princípios jurídicos servem de inspiração para edição das regras, verdadeiros referenciais para que o hermeneuta faça valer o direito.

Também cumpre reprisar que, diante de um caso sob análise que desperte a invocação de mais de um princípio, o operador do direito, em caso de conflito aparente de normas, deve ponderá-lo e aplicar aquele que se revela mais caro para preservar e solucionar a questão.

Entrando no assunto propriamente dito, os novos princípios constitucionais gerais tributários[2] somam-se a outros que já constavam do sistema vigente, a exemplo da legalidade, irretroatividade, anterioridade geral, noventena (anterioridade nonagesimal), vedação de confisco, liberdade de tráfego e isonomia.

Tais princípios formam um cinturão protetivo do contribuinte e guardam inspiração nos princípios constitucionais gerais, tais como o da legalidade lato sensu, segurança jurídica, igualdade, não surpresa, liberdade de locomoção, preservação da propriedade, dentre outros.

Eis o dispositivo constitucional implantado pelo reformador:

Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
...
§ 3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente.
§ 4º As alterações na legislação tributária buscarão atenuar efeitos regressivos.

Necessário dizer que os princípios específicos aplicáveis particularmente a certos tributos – tal qual ocorre com o Imposto de Renda (IR) e com o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) – serão tratados em outro texto, até por questões de sistematização do estudo. Por enquanto, fiquemos nos novos princípios gerais positivados.

Dito isso, vamos à análise de cada um deles.

Simplicidade

Considera-se simples um Sistema Tributário regido por mecanismos de tributação facilmente entendidos por todos, sem adoção de mecanismos intrincados para se chegar ao valor devido do tributo ou criar normas de entendimento complexas ou abertas a inúmeras – e contraditórias – interpretações. Simplicidade, num só fôlego, gera segurança jurídica e pacificação da interação do fisco com o contribuinte que, de resvalo, propicia um bom ambiente para os investimentos negociais.

É unânime entre os doutrinadores que o sistema tributário brasileiro atinge inúmeras camadas de entendimento, beirando perplexidades incontornáveis. Até os operadores do direito muitas vezes não alcançam na completude uma determinada norma. O sistema é complexo porque a regra é confusa, o funcionamento de determinado tributo é complicado, as exceções são muitas e, por incrível que pareça, por ser casuístico e abordar múltiplas situações, abre lacunas que favorecem polêmicas intermináveis.

Daí também ser voz corrente que o passivo judicial tributário no país é gigantesco. Perde o contribuinte, que se torna devedor do erário por tempo indeterminado, no mínimo encarado pelo administrador público com certa suspeição, perde o sujeito ativo que não vê atendida de imediato a sua exigência, deixando de cumprir a contento o seu papel político-social, perde a sociedade que não vê o tributo discutido transformado em ingressos de receita aplicada na execução de políticas públicas.

Diga-se, outrossim, que o esforço legislativo tenta ir na direção de simplificar o cumprimento das obrigações acessórias. Aliás, um dos motivos principais para convencer a sociedade da urgência da reforma foi a busca pela redução dos custos de conformidade suportados pelos contribuintes, isto é, a subtração de despesas gastas com os trabalhadores especializados na área fiscal-contábil, na missão de adimplir os deveres instrumentais. A reforma traria, potencialmente, eficiência burocrática para as organizações[3].

De outro lado, em certo peso a simplificação afetaria a nomeação de servidores públicos experts para atuarem no controle e arrecadação dos recursos, posto que a nova ordem implicará em normas concisas, de fácil compreensão e funcionamento, não havendo premência de tantos profissionais do fisco para atuarem junto aos contribuintes. Aliás, a Inteligência Artificial (IA) já vem sendo uma ferramenta usada eficientemente no combate à sonegação e no cruzamento de dados e informações, com dispensa de pessoal preparado nas tarefas mais simples de monitoramento e inibição dos ilícitos. Mas não será bem assim[4].

Em particular, a nova tributação sobre o consumo promete facilitar os procedimentos para cálculo e recolhimento do IBS e da CBS[5]. Este esquema dual pode trazer simplificações importantes, mormente no que tange ao cumprimento das obrigações acessórias e a gestão parcial do IBS por uma única entidade pública.

Veja-se como raciocinou o Congresso Nacional[6]:

“Espera-se que a modernização e simplificação das obrigações tributárias acessórias do novo imposto (IBS) reduzam enormemente o custo de conformidade do regime não cumulativo, com a concessão do crédito ocorrendo automaticamente a partir da identificação do adquirente no documento fiscal da operação, tornando-se atrativa sua adoção também pelas pequenas empresas” (parêntesis nossos).
...

Por fim, mas não menos importante, a criação do Conselho Federativo com a administração compartilhada do IBS é enorme avanço para o contribuinte. Trata-se da garantia de que a regulamentação será única para todo o território nacional e, em decorrência, de que as obrigações acessórias serão simplificadas. Além disso, eleva-se significativamente a segurança jurídica quando há um órgão central responsável pela administração do tributo, em vez de mais de cinco mil unidades federativas atuando de forma separada”. (In https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2297250 pp. 73 e 79. Qualidade dos gastos tributários no Brasil: o Simples Nacional / Leonel Cesarino Pessôa e Samuel Pessôa (organização) – São Paulo: FGV Direito SP, 2020.).

Todavia, parece que a tendência à descomplicação não se refletirá na realidade.

Já há quem analise em caminho oposto, como Fernando Facury Scaff [7]:

Não me parece que a EC 132 apresente um sistema simplificado. Repito, para destacar: foram introduzidas 37 (trinta e sete) páginas de novo texto normativo constitucional sobre Direito Tributário. O curioso é que ainda se considera que o sistema esteja sendo simplificado, o que não aparenta ocorrer.

E quem noticie o contrário[8]:

Diante desse novo cenário, a consultoria ROIT preparou uma análise utilizando um modelo de inteligência com dados do SPED - Sistema Público de Escrituração Digital, que compila todas as informações enviadas pelas empresas à RFB - Receita Federal do Brasil.

A partir desses dados, a consultoria recalculou todas as bases tributárias para avaliar os impactos da reforma tributária em mais de mil empresas que, juntas, têm um faturamento anual combinado acima de R$ 1,3 trilhão de reais...

O resultado é que após examinar seus registros fiscais, a ROIT observou que 93% delas enfrentará aumentos nos custos em razão do novo sistema tributário.

Resta aguardar o que as leis complementares vão reservar para o funcionamento do sistema. Inclusive há discussões de algumas situações que proporcionam estranhezas, como a quem caberá receber o IBS quando o contribuinte consumidor tiver domicílio em um Estado e município e efetivar o consumo em outras unidades federativas. Há quem afirme que a nova tributação sobre consumo virá ainda complexa, com o agravante de que agora tudo será novo, desconhecido no país, apesar de existirem experiências internacionais que podem servir de paradigma[9].

Fato é que o “Simples Nacional” serve como boa ilustração do imbróglio normativo ao qual as pequenas empresas se submetem. A ideia de descomplicar a tributação para os microempresários parou apenas na denominação do regime jurídico. A LC 123/06 concebeu inúmeras regras que as tornam ininteligíveis para o empreendedor brasileiro, apesar do empenho da classe contábil em desvendar os nós normativos. Na tentativa de colocar fim a muitas discussões, o Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN) editou várias resoluções que procuram dar solução a muitos problemas.

E o pior: o micro e o pequeno empresário acabam sujeitos a um mar de exceções que os afastam da carga minorada de tributação, sendo obrigado a assumir o pagamento do ICMS como se grande empreendedor fosse, a exemplo das hipóteses de substituição tributária. O resultado é que tais contribuintes, que deveriam pagar muito menos tributo como ideado pela norma constitucional, assumem na prática ônus muito maiores.

Competirá ao STF avaliar se um dispositivo ou um conjunto de dispositivos criados nas leis complementares disciplinadoras da reforma atenderão ou desatenderão o princípio da simplicidade ou se tal princípio não passará do nível de norma programática, não propiciando efeitos práticos relevantes.

Transparência

Atribui-se transparência ao Sistema Tributário Nacional quando o contribuinte de fato (os cidadãos em geral) e de direito (os sujeitos passivos indicados na lei) sabem exatamente quanto em moeda está pagando de tributo, qual a carga incidente sobre o fato gerador, demonstrado claramente nos documentos jurídico-fiscais com os quais acederam.

Numa primeira análise, pode-se dizer que a transparência tributária busca inspiração no estado democrático de direito[10]. É que um sistema normativo hermético ajuda o povo a permanecer na ignorância, sem conhecer ao certo quanto vem suportando de tributos.

A medida da carga tributária assumida interessa a todos e também a cada um de nós como cidadão, até para saber bem postular melhorias, atenuações e compartilhamentos da carga tributária.

Num regime democrático, é legítimo aos concidadãos pressionarem os mandatários eleitos para que os tributos sejam calibrados convenientemente, de sorte a não sacrificar os ganhos auferidos e não inibir a satisfação de suas necessidades como ser humano. E não se trata aqui de falar sobre o mínimo vital, instituto conhecido entre os tributaristas, mas de garantir ao indivíduo o exercício pleno e livre dos seus direitos.

Para poder protestar com propriedade, o cidadão deve tomar conhecimento de quanto paga de tributo em cada ato que pratica. Note-se que o princípio é alargado porquanto não só nos documentos fiscais deve ficar consignado quanto de tributo está a incidir, seja qual for a sua espécie, mas num contrato ou escritura, por exemplo, no sentido do contribuinte saber quanto paga no todo, para que possa mensurar se esta carga compromete ou não o exercício da sua cidadania[11]. Este é o link entre a transparência e a democracia que se procura atar.

Bem verdade que a exigência de tornar a tributação transparente não constitui novidade na ordem constitucional então em vigor, pelo menos de modo particular. É que antes da reforma já havia no texto constitucional norma que previa lei determinativa de providências para que os consumidores sejam esclarecidos sobre os impostos incidentes sobre mercadorias e serviços. Neste sentido, veja-se o art. 150, §5º, da CF/88. Na prática, entretanto, isto não ganhou efetividade[12].

Justiça Tributária

A ideia de Justiça Tributária, em verdade, transpõe o próprio conceito de princípio. Ultrapassa as suas fronteiras, pois cabe perfeitamente na definição de postulado jurídico, assim entendido, na concepção de Humberto Ávila[13], como normas imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação. Assim, qualificam-se como normas sobre a aplicação de outras normas, isto é, como metanormas. Daí se dizer que se qualificam como normas de segundo grau. Nesse viés, sempre que se está diante de um postulado normativo, há uma diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à interpretação de outras normas. Por trás dos postulados, há sempre outras normas que estão sendo aplicadas.

Também não seria exagero qualificar a justiça tributária como uma espécie de primado desta área de conhecimento, a ser empunhado para sempre prevalecer quando uma norma ou princípio mal aplicados estiverem conflitando com os ideais da equidade, do bom senso, do ser justo, não obstante reconheçamos que isto pode acarretar subjetividades. Diante de normas e princípios a serem aplicados nas relações entre fisco e contribuinte, pensados desde a sua concepção (e agora falamos do próprio processo legislativo), há que se ter como pressuposto mental primeiro a efetivação da justiça tributária[14].

Neste compasso, a justiça tributária corresponde a um conceito relativo, um tanto difuso, mas que se exterioriza na ideia de que a carga tributária deve ser a mais equânime possível, proporcional à capacidade econômica dos contribuintes, às necessidades coletivas, ao caráter redistributivo da renda conferido ao tributo, à distribuição dos recursos entre os entes federativos, proporcional ao tamanho de suas competências para execução das políticas públicas.

Logo, está ela presente na capacidade econômica, na medida em que o contribuinte deve pagar tributos dentro das suas forças patrimoniais e financeiras, inclusive quando comparado a outros sujeitos passivos dotados de maior lastro contributivo.

A Justiça Tributária revela-se no equilíbrio entre os poderes atribuídos aos entes tributantes e os direitos protetivos conferidos aos cidadãos pagadores de tributos.

Exprime-se na isonomia, eis que os contribuintes precisam ser tratados igualmente e desigualmente na medida em que se desigualam, dentro de cada uma das suas condições patrimoniais, catalogados em grupos de colaboração financeira, ofertando seu esforço na realização de políticas públicas.

E, no mesmo passo, externa-se na realização da tributação progressiva, a partir da qual paga mais quem tiver mais range contributivo.

A Justiça Tributária nasce a partir do exercício do direito de petição, pois se a postulação está dotada de razoabilidade, a decisão administrativa necessita encontrar uma fórmula justa e razoável de proteger os interesses do peticionante. Sem solapar - é claro - os direitos da coletividade.

Impõe-se no procedimento e no processo administrativo tributário, porquanto é através deles que a Administração Pública tem a oportunidade de promover a autotutela, ao fazer o acertamento do crédito tributário e, por outras mãos, reavaliá-lo para saber se a exigência resulta judiciosa, a partir dos primeiros olhares lançados pelo sujeito ativo. Enfim, exigindo-se o que for efetivamente devido e desprezando-se cobranças desprovidas de juridicidade.

Bem a propósito, a voz de  Mary Elbe Gomes Queiroz Maia[15]:

“A correta imposição tributária, a perfectibilidade do lançamento e do processo administrativo-tributário, a isonomia tributária e a justiça fiscal somente poderão ser alcançadas com a melhor estruturação do contencioso administrativo, com a codificação das normas processuais tributárias que hoje são esparsas, lacunosas e assistemáticas e por meio de uma maior conscientização ético-jurídico-legal das autoridades competentes para o exercício destas atividades, pois não basta que a Administração Tributária constitua e execute créditos, para que ela atinja os fins a que se destina, estes créditos deverão ser revestidos de certeza, legalidade, haja agilidade na sua arrecadação e sejam respeitadas as garantias fundamentais asseguradas constitucionalmente aos contribuintes”.

Logo, a Justiça Tributária repulsa os abusos de autoridade, pois a arbitrariedade é infensa ao que é justo, arrepia a lei, desnorteia o bom aplicador do direito.

Ladeia a solidariedade prevista na Constituição, pois consiste em objetivo primordial do Estado brasileiro a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Pessoas políticas e cidadãos, num sentido lato, fazem parte da sociedade, e toda ela deverá ser regida pela solidariedade social e pela justiça, particularmente a justiça tributária.

Precisa funcionar quando se pensa na pessoa que é ao mesmo tempo devedora e credora do ente tributante, ao incentivar a mediação, compensação e transação tributárias.

Ganha proeminência quando se concebe um Estatuto de Defesa do Contribuinte, a regimentar os direitos e garantias dos sujeitos passivos, além de terceiros relacionados com a relação jurídico-tributária.

Enfim, a justiça tributária permeia e perpassa vários rincões do direito tributário material e formal.

Por estas e outras análises é que Gustavo Miguez de Mello[16] lembra que, no Canadá, adepto ao federalismo como o Brasil, a Royal Commission on Taxation asseverou que, não obstante o realce federativo, a equidade ou justiça fiscal é a primeira e mais essencial finalidade da tributação.

E arremata[17]:

“As normas gerais em matéria de legislação tributária são imprescindíveis, na prática, para a observância do princípio de justiça fiscal (tributação de conformidade com a capacidade contributiva) e para que sejam respeitados diversos direitos individuais...”

No mesmo sentido, J. L. Saldanha Sanches[18]:

“A Constituição procura assim execução dos princípios do Estado de Direito em sentido material: concebendo um sistema de tributação que se organize segundo um principio estruturante, no sentido de um principio que permita uma decisão normativa sobre o modo de distribuição dos encargos tributários que concretize o principio da justiça tributaria.

Antes de tudo, a justiça tributária precisa orientar o legislador brasileiro no momento da criação da norma. Dito agente político deve fazer fervorosamente um exercício intelectual prospectivo para identificar as repercussões dos regramentos imaginados, se de alguma forma estes poderão mitigar a justa tributação.

Cooperação

Um Sistema Tributário Nacional cooperativo não é só aquele que busque a participação, interação e integração dos entes tributantes, no intuito de facilitar o controle e acompanhamento da arrecadação dos tributos. O modelo cooperativo também passa pelo pensamento de que fisco e contribuinte devem colaborar entre si para que se tenha a melhor fórmula de tributação, quantitativa e qualitativamente.

A proposta inicialmente concebida para a tributação do IBS – gestada em segmentos econômicos sulistas - pressupunha a participação do empresariado nas decisões estratégicas do fisco. Autoridades tributárias e representantes de organizações privadas dividiriam lado a lado a administração deste imposto, de tal sorte que não haveria margens para normas nem procedimentos arbitrários.

Do ponto de vista da colaboração entre as entidades tributantes, não constitui novidade haver previsão de que entre elas fossem trocadas informações para que os tributos fossem cobrados, na forma de convênios celebrados, aliás com status de normas complementares. Neste sentido, consulte-se o art. 100, IV, c/c o art. 199, ambos do CTN. Seria factível que um determinado estado-membro, ao detectar omissões de receitas sujeitas ao ICMS, desse conhecimento da conduta para a União tomar as providências na área dos tributos federais; e vice-versa; e assim por diante.

Mais recentemente, a legislação tributária passou a dar tratamento diferenciado entre bons e maus contribuintes, numa espécie de escalonamento em face de benesses ofertadas pelo sujeito ativo. Um contribuinte cumpridor de seus deveres, pontual nos recolhimentos, adimplente nas obrigações acessórias, ganhava prazos especiais – e alargados – para pagamento do tributo, desfrutava de regimes especiais para usufruir de favores fiscais (reduções de base de cálculo, créditos fiscais presumidos etc.), teria preferências no atendimento dos seus pleitos (consultas, restituições etc.) e até mesmo em concorrências públicas (apesar da polêmica que isto causa). Sustentava-se que este diferencial só faria confirmar o princípio da isonomia tributária, porquanto apenas se estaria tratando desigualmente contribuintes em situação diferente.

O gesto de implantar em certos territórios tributantes um Código de Defesa do Contribuinte esboça bem que a produção deste conjunto de regras, por si só, já reflete o espírito colaborativo entre as partes da relação jurídico-tributária. Diploma normativo de tal natureza – para adquirir qualidade e atingir os seus fins - deverá passar por um trabalho de elaboração feito a “quatro mãos”, pois o que interessa em última análise neste intento é fazer irradiar os direitos constitucionais protetivos do contribuinte.

O passo seguinte provavelmente será a participação maciça do contribuinte nas decisões tomadas pelas Administrações Fazendárias. Também em certa medida isto já acontece, se focarmos na representação paritária nos julgamentos administrativos tributários, existente no seio de alguns entes tributantes, apesar da regra de, em caso de empate, prevalecer o entendimento do fisco[19]. Ou, no campo da substituição do ICMS, em vista da possibilidade do contribuinte fornecer subsídios para fixação da Margem de Valor Agregado (MVA). Ou até mesmo na representação indireta legislativa, quando determinado setor empresarial oferece sugestões para um parlamentar defensor de seus interesses, no sentido de alterar proposições de uma lei tributária.

O desafio está posto. A participação do contribuinte poderá avançar, mas para isso a educação e cultura empresariais e estatais no país precisarão evoluir muito. Não será surpresa se, num futuro próximo, representantes de segmentos empresariais passarem a administrar diretamente determinado tributo, em igualdade de condições com o gestor público, não só para editar normas infralegais, mas também para ajudar a planejar as medidas preventivas de controle da evasão tributária e suas ações fiscais consequentes.

A mediação para compor conflitos tributários ganhará espaços maiores, na linha de que mais interessa ver o crédito tributário ingressar em somas menores do que jamais vê-lo ingressar. A tendência é de gradativamente o princípio da supremacia do interesse público ir perdendo ainda mais força dentro da gestão tributária moderna, sofrendo constantes relativizações. Mas seria de bom alvitre que esta participação fosse franqueada somente para contribuintes sérios e comprometidos, de reputação comercial ilibada, com alternância de comandos responsável e bem construída.

Atenuação da regressividade

Ao contrário dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde a parcela de tributos sobre a renda e o patrimônio supera o pedaço reservado à tributação sobre o consumo, no Brasil a equação é inversa: fruto de distorções históricas, o efeito regressivo revela-se cruel e avassalador, eis que a tributação sobre o consumo ficou compartilhada entre União, Estados e Municípios, entes federativos que sempre procuram incrementar as suas arrecadações, agravando a carga suportada pelos consumidores.

Do ponto de vista estritamente jurídico, o ICMS é regido pela linearidade, posto que a alíquota aplicável sobre determinada mercadoria em certo Estado é única. Dado um território tributante, para um quilo de determinado alimento, a alíquota será a mesma. Mas do ponto de vista jurídico-econômico, os efeitos regressivos são evidentes. Como a alíquota é uma só para determinado tipo de alimento, por exemplo, o consumidor menos favorecido será muito mais sacrificado do que o consumidor rico. Por ser item de primeira necessidade e, portanto, de compra inevitável, gravará muito mais o patrimônio de uma pessoa do que o de outra – e aí temos os prejuízos da regressividade.

De outro lado, a progressividade realiza melhor a justiça tributária, tal qual acontece, em certa intensidade, com o imposto sobre a renda[20].

A atitude do legislador reformista espelha a sua preocupação em disseminar o máximo possível o critério da progressividade para além dos tributos e hipóteses previstas na ordem legal posta.  Salvo situações de implementação inviável, a intenção parece ser adotar o mecanismo de aplicar alíquotas maiores para bases de cálculo maiores, no sentido de progredir as cargas quanto mais altas sejam as expressões de riqueza.

Diga-se, de passagem, que a EC 132/23 criou a possibilidade do consumidor desfavorecido receber de volta parte do IBS e da CBS que pagou em suas compras, em procedimento chamado de cashback, o que, de certa forma, minimiza o efeito regressivo da tributação sobre o consumo. Enquanto o pobre receberá de volta os tributos incidentes sobre o consumo, o rico não terá este direito. Sem embargo, o problema persiste naqueles consumidores de baixa capacidade contributiva, localizados no limiar da possibilidade do cashback, a ser tratado injustiçadamente em relação ao consumidor abastado – e ao próprio consumidor bafejado pela devolução[21].

Defesa do meio-ambiente

A bandeira erguida em defesa do meio ambiente vem sendo um dos principais pavilhões do século XXI, considerando a preocupação de boa parte da humanidade em preservar o planeta para as próximas gerações, livrá-lo da poluição, evitar o aquecimento do clima, resguardar a flora e a fauna silvestres, dentre outras preocupações de relevo.

A normatização da interação com os ecossistemas é objeto de estudo de importante ramo jurídico, isto é, o direito ambiental, cuja normatização no Brasil é de competência concorrente e de ação comum das pessoas federativas, conforme enunciam os arts. 23 e 24, VI e VIII, da CF/88.

A questão do meio-ambiente permeia também o direito tributário, na medida em que incentivos fiscais (chamados por alguns de “imposto verde”) são criados quando o sujeito passivo, no exercício de suas atividades, demonstra cuidados para com o cenário natural circundante.

A defesa do meio-ambiente constitui, portanto, prioridade máxima para muitos países. Altas tributações sobre bens prejudiciais à existência humana passarão a ser estimuladas. No outro polo, cargas tributárias amenizadas focarão em produtos “limpos” que pouco ou quase nenhum dano proporcionem ao planeta.

O constituinte reformista também caminhou nesta senda, ao dar atenção especial ao tema. Por conseguinte, prestigia-se na EC 132/23 o respeito à sustentabilidade ambiental e a ênfase na diminuição das emissões de carbono quando a lei instaurar isenções, reduções ou diferimento temporário de tributos federais.

Tais diretrizes foram aditadas ao art. 43 da CF/88, cujos comandos dão à União o papel de promover ações políticas em complexos geoeconômicos e sociais, visando o seu progresso ou a diminuição das desigualdades regionais.

Mais detidamente, o legislador reformista atribuiu para o Poder Público a missão de proteger o meio ambiente ecologicamente equilibrado, de modo a prosseguir e ampliar  regimes  fiscais favorecidos para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, no intuito de emprestar-lhes menor tributação e maior diferencial competitivo quando comparadas aos combustíveis fósseis, especialmente em relação a PIS, COFINS, contribuição social sobre importações de bens e serviços, CBS, ICMS e IBS.

O meio-ambiente ganha especial tratamento tributário no campo do “imposto seletivo”, previsto no art. 153, VIII, da CF/88, criado na reforma com função extrafiscal proibitiva, qual seja, a de inibir a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços que sejam prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, impondo a tais atividades cargas tributárias significativas[22].

Fato é que as normas tributárias contemporaneamente vêm se espraiando quando buscam afetar questões ambientais, usadas com o intuito de incutir na sociedade toda uma preocupação com o futuro da humanidade e aculturar os cidadãos para empreendimentos solidários e responsáveis com a causa planetária.

Considerações finais

Com a consagração de novos princípios tributários positivados no texto constitucional, o legislador parece continuar prestigiando os comandos genéricos como bússola para o aplicador do direito. As normas infra constitucionais continuarão seguindo tais preceitos, com tendência a serem rejeitadas da ordem jurídica caso assim não se conformem.

Se uma norma tributária exsurge obscura, lacunosa e incompreensível para o cidadão medius, estará fadada a contrariar os princípios da transferência e da simplicidade.

Se, por sua vez, a norma revela-se com traços de regressividade, haverá vozes que se levantarão contra a sua aplicabilidade.

Ou se contiver estímulos à exploração desenfreada ou irresponsável do meio ambiente, seguramente será rejeitada pela ordem constitucional vigente.

E se todas ou qualquer uma delas se mostrarem injustas, em certa medida poderão ser refutadas em face do princípio da justiça tributária embora, reprise-se, seja de difícil aferição medir-se quão desarrazoada ela será para se tornar infensa ao sistema tributário nacional em vigor.

A inclusão de novos princípios constitucionais tributários poderá abrir fendas na legislação que estará por vir, notadamente nas leis complementares, o passo adiante normativo para que a nova estrutura de tributação no país esteja de acordo com os pilares constitucionais sobrepostos. Logo, a responsabilidade deste legislador será de importância tão grande que, se houver falhas estruturantes, todo o novo esquema de tributação poderá ruir parcial ou totalmente, pondo a pique o esforço da sociedade organizada em oferecer para os cidadãos uma tributação moderna, eficaz e consciente.

[1] Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos.  Ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
[2] Há os princípios específicos aplicáveis a um tributo ou grupo de tributos, a exemplo do da neutralidade, a serem tratados em outro texto.
[3] Este desejo é antigo no meio empresarial, apesar de, num primeiro momento, na fase de transição do velho para o novo sistema, enquanto vigorarem simultaneamente os dois regimes jurídicos, o labor no atendimento de tais obrigações será redobrado.
[4] Sobre este tema, escrevemos que, ainda assim, a atividade intelectiva do ser humano continuará imprescindível para a detecção das táticas de evasão (v. link https://iaf.org.br/inteligencia-artificial-lancamento-tributario/).
[5] Claro que, durante o período de transição, conviveremos com o sistema velho e atual da tributação sobre o consumo, pois a transformação do velho para o novo será paulatina, com cargas tributária diminutivas temporais para os impostos e contribuições incidentes sobre o consumo e aumentativas para as exações criadas na EC 132/23.
[6] In https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2297250 pp. 73 e 79. Qualidade dos gastos tributários no Brasil: o Simples Nacional / Leonel Cesarino Pessôa e Samuel Pessôa (organização) - São Paulo: FGV Direito SP, 2020.
[7] https://www.conjur.com.br/2024-jan-22/as-aliquotas-e-o-principio-da-simplicidade-na-reforma-tributaria/
 [8] https://www.terra.com.br/noticias/reforma-tributaria-pode-elevar-os-custos-das-empresas,b6a3eb6884d7b8ac844f0e0f21b0cf5cqnq7y3g8.html?utm_source=clipboard.
[9] Muito embora o modelo de tributação sobre o consumo aqui criado tenha sofrido customizações para se amoldar à realidade brasileira, atendendo interesses políticos para que pudesse ser aprovado no Congresso Nacional.
[10] Vale pontuar que no campo do IBS a gestão deste imposto caberá ao Comitê Gestor, o qual competirá distribuir a arrecadação de acordo com os critérios fixados na lei constitucional e detalhados na lei complementar, e se servirá de algoritmos para executar esta tarefa. A bem da transparência tributária, será preciso tornar transparente para Estados e Municípios a forma pela qual este algoritmo será construído.
[11] Aliás, não será difícil criar um simulador em que o contribuinte vá alimentando os seus atos, fatos e situações tributáveis com os respectivos valores, a fim de saber por mês ou por ano quanto suportou de tributos; basta haver boa vontade política nesta direção.
[12] No máximo que se conseguiu fazer foi constar dos documentos fiscais uma estimativa dos impostos incidentes sobre as operações e prestações e que, não raro, distanciavam-se muito da realidade.
[13] Ob. cit., p 134.
[14] Não podemos deixar de lembrar que o legislador do CTN, em seu art. 108, §4º, vedou a aplicação da equidade para dispensar tributo, embora seja ela muito bem vinda em muitas outras situações, inclusive no campo das penalidades pecuniárias e das hipóteses de extinção do crédito tributário. Neste sentido o art. 172, IV, do Codex Tributário.
[15] Do Lançamento Tributário – Execução e Controle, pp. 186 e 191.
[16] Processo Administrativo Tributário, In Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002Ob cit., p. 345.
[17] Ob cit., pp. 333/334, 339 e 351.
[18] Manual de Direito Fiscal. Coimbra Editora: 2002. pp. 167/168.
[19] Exploramos o tema em texto específico, intitulado O surgimento do Robotax: Inteligência Artificial (IA), a obrigação do fisco orientar o contribuinte e a atividade criativa do Lançamento Tributário.
[20] Há quem defenda a criação de alíquotas maiores e mais variadas para determinadas faixas de renda.
[21] Um exemplo hipotético: admita-se um consumidor que perceba rendimentos de R$1950,00, contemplado pelo cashback, e outro que perceba R$2000,00, que seja submetido a uma alíquota de 20% sobre o IBS e CBS, sem direito a devolução, ao consumir um determinado item, tendo que pagar o mesmo valor de imposto assumido por um milionário; o indesejável efeito regressivo permanece para este assalariado, só porque ganha cinquenta reais a mais. A não ser que se implante uma devolução escalonada de acordo com a capacidade contributiva do beneficiário.
[22] Apesar das críticas pertinentes de que tributos onerosos nem sempre atuam eficientemente na inibição do desenvolvimento destes negócios.
(*) Auditor Fiscal, Diretor de Assuntos Fiscais e Tributários do IAF Sindical
(**) Auditor Fiscal, Ex-Diretor Jurídico do IAF Sindical
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