13/07/2023

Impactos da Reforma Tributária para o brasileiro. O “Cramulhano” reside nas entrelinhas – Parte 2

Vladimir Miranda Morgado (*)

Introdução.

Tal qual fizemos na primeira parte deste estudo, o título do texto refere “Cramulhano” que, na Região Nordeste, significa capeta, satanás. Também nessas bandas poderá haver perda de renda e emprego para os seus habitantes, pois os grandes contribuintes preferirão instalar-se no sul do Brasil. Lá é que ficarão a maior parte dos elos da cadeia produtiva e os consumidores de melhor poder aquisitivo. Para agravar, o texto constitucional contempla possibilidades de oneração tributária para as camadas menos favorecidas da sociedade. Tudo dependerá das entrelinhas das normas que serão imaginadas pelo legislador tributário.

A despeito da proposta de criação de um fundo de desenvolvimento regional, do qual recursos serão vertidos para investimentos nas regiões geoeconômicas menos desenvolvidas, Estados-membros mais abastados pretendem tirar bocados graúdos das quantias ali disponibilizadas, sob a alegação de serem populosos e de possuírem também bolsões de pobreza. Ainda que isto seja verdade, a lógica deste fundo vai na sintonia de fazer realizar os objetivos fundamentais consagrados no art. 3º, I, II e III, da CF/88, quais sejam, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, além de reduzir as heterogeneidades sociais e regionais. Se tais cifras forem utilizadas largamente pelos entes federativos mais ricos, as disparidades regionais continuarão existindo, poderão até piorar. O país poderá seguir crescentemente desigual.

Competirá ao Senado, como representante dos Estados-membros, a tarefa de sensibilizar a repartição destas receitas, reservando para as entidades federativas mais necessitadas a maior parcela de recursos. Afinal, não se pode transformar a guerra fiscal em guerra de divisas.

Repita-se que não somos contrários à reforma tributária recém aprovada na Câmara dos Deputados, sobretudo quanto à adoção do tributo de valor agregado. Mas precisamos ter cautela para não admitirmos no texto proposto a inserção de privilégios, dedicados tanto a certos sujeitos ativos como a certos sujeitos passivos. Na pressa de implantar logo a PEC 45, há quem cogite do Senado assentir com o texto aprovado pelos deputados, sem retoques, para fazer correr uma PEC paralela, uma espécie de filhote parido da primeira, com cadência muito mais lenta, contemplando outros ajustes.

A Parte 2 deste estudo visa apontar possibilidades concretas de aumento de tributos e preços para a maioria da sociedade brasileira, nomeadamente no campo das contribuições estaduais, IPTU e imposto seletivo.

  1. Contribuições estaduais.

Um dos últimos atos praticados pelo relator da PEC 45 antes da aprovação pelo Plenário da Câmara foi anunciar na tribuna a inserção da seguinte norma:

Art. 20. Os Estados e o Distrito Federal poderão instituir contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação, em substituição a contribuição a fundos estaduais, estabelecida como condição à aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento diferenciado, relacionados com o imposto de que trata o art. 155, II, da Constituição Federal, prevista na respectiva legislação estadual em 30 de abril de 2023.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se até 31 de dezembro de 2043.

A argumentação apresentada pelo deputado foi no sentido de atender à reivindicação de alguns Estados para alçar ao status constitucional a previsão desse tributo que, em seus territórios, já é cobrado na prática. Daí ter validade por prazo determinado, até 2043.

Pela literalidade da norma, apesar de imprecisa, parece ter sido essa a intenção do parlamentar: prolongar a contribuição apenas para determinados Estados. Tanto é que, pela dicção direta do texto, a contribuição em comento virá em substituição às contribuições existentes em 30/04/2023 nas respectivas legislações estaduais. Entretanto, à luz do pacto federativo, os demais Estados poderão perseguir o direito de instituir em seu território idêntica exação, circunstância que, no mínimo, poderá gerar sérios embates judiciais.

Partindo do pressuposto de que os demais Estados possam cobrar a contribuição, nós pagaremos novamente a conta. É que o tributo recairá sobre a produção no território do ente tributante de produtos primários e semielaborados, cuja arrecadação será destinada para investimentos em obras de infraestrutura e habitação.

Em primeiro lugar, corremos o risco de voltarmos à antiga discussão do que significa produto semielaborado, objeto de muita celeuma logo após o ICMS ter sido criado em 1988. Se critérios subjetivos ou de difícil aferição forem criados, teremos um grande passivo a discutir.

Por igual, os produtos primários estarão na hipótese de incidência: sendo estes considerados como os relacionados ao setor econômico primário, alimentos in natura sairão do campo para o supermercado com oneração de preços.

  1. IPTU

A mudança no IPTU abre um precedente inquietante para o cidadão dono de imóvel urbano. É que as “atualizações” (sic. art. 156, §1º, III, da CF/88) de base de cálculo serão efetivadas via decreto, diretamente pelo Poder Executivo, conforme critérios pré-estabelecidos em lei municipal. A ideia é superar o teor da Súmula 160 do STJ.

Segundo jurisprudência daquela Corte, atualmente apenas os reajustes anuais com base em índices de correção de preços estavam permitidos para o prefeito fazer, sem chancela do Legislativo local.  Compete saber qual o alcance normativo da palavra atualização, agora utilizada pelo legislador constitucional. Tudo leva a crer que nela estão contemplados os aumentos reais da base de cálculo pelo Executivo, mediante critérios definidos em lei local.

Se o Executivo puder mudar as bases de cálculo do IPTU, abre-se a possibilidade de haver superestimação do valor a recolher, mesmo admitindo-se a avaliação contraditória (art. 148 do CTN). Seguramente há no Brasil municípios que contam com as bases de cálculo dos imóveis urbanos defasadas, de sorte que os contribuintes podem ser surpreendidos no início de cada ano com um carnet de IPTU contendo quantias exorbitantes do imposto.

Seria de bom alvitre o legislador nacional complementar criar “travas”, limites e critérios gerais e graduais no tempo para fixação e atualização da base do imposto, ficando o legislador municipal vinculado a tais restrições. Deixar os vereadores livres para estabelecerem os critérios que lhes aprouverem, muitas vezes em composição com o próprio administrador público municipal, não parece a melhor estratégia de proteção do contribuinte que, não raro, nem saberá dos seus direitos, ou, se souber, preferirá se conformar com o aumento repentino – e por vezes injusto – do tributo, no lugar de promover a demanda judicial competente.

  1. Imposto seletivo.

Acompanhando uma tendência mundial, o constituinte reformista (art. 153, VIII) criou um imposto que incidirá sobre a produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio-ambiente, na forma da lei, apelidado açodadamente pela mídia não especializada de “imposto sobre o pecado”.

A despeito das intenções nobres contidas na exação, posto pretender inibir o consumo de bens e serviços danosos à saúde e ao meio-ambiente, o reflexo será sentido pelos consumidores.

Primeiro porque não faltarão aqueles que pretenderão implantar uma superalíquota para o imposto, a pretexto de combater o consumo de certos produtos. Para o bem ou para o mal, seja qual for o seu percentual, haverá inexoravelmente aumento de preços.

Depois porque este imposto fará parte da base de cálculo do ICMS e ISS (enquanto não extintos), além do IBS e da CBS (art. 153, §6º, II, da CF/88). Evidentemente, com a base desses tributos majorada em face da inclusão do imposto seletivo, os preços dos bens, mercadorias e serviços fatalmente subirão. Só não se sabe em qual medida.

O grande problema estará na definição de bens e serviços nocivos à saúde e ao meio-ambiente. Se produtos de consumo frequente e popular forem alcançados pelo tributo, tanto os processados como os ultraprocessados (e do ponto de vista médico não discordamos disto), o pobre não deixará de consumi-los, não só pela sua praticidade mas sobretudo pelos seus preços, bem mais baratos do que os produtos orgânicos e de confecção artesanal. Pães, sardinhas enlatadas (processados), salgadinhos “em pacote”, carne de hambúrguer e refrigerantes (ultraprocessados) continuarão na mesa do pobre, agora sobretaxados. Infelizmente.

Considerações finais.

Além das entidades civis se mobilizarem para acompanhar, opinar e cobrar medidas protetivas dos brasileiros quando as leis infraconstitucionais consequentes estiverem sendo discutidas, cabe a cada cidadão, através dos canais adequados, exigir do parlamentar da sua região uma conduta protetora a fim de evitar uma tendência de carestia em face da reforma tributária.

A Parte 3 será inteiramente dedicada aos tributos incidentes sobre o consumo (CBS e IBS), seus mecanismos de devolução para segmentos menos favorecidos da população (cashback) e as implicações que poderão surgir nos preços suportados pela sociedade brasileira.

(*) Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia, membro do Conselho Estadual da Fazenda (Consef), Doutor em Direito pela UAL/UFPE, Autor do livro “Fisco e Contribuinte no PAF”, Ex-Diretor Jurídico do IAF Sindical.

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