Taxação sem representação: O maior problema da PEC 45/2019
Roberto Araújo Magalhães (*)
Desde a Revolução Americana no século XVIII, o grito de guerra "no taxation without representation" (“nenhuma taxação sem representação”) tem sido um pilar fundamental das democracias em todo o mundo. Esta frase reflete um princípio essencial: os cidadãos não devem ser obrigados a pagar impostos para um governo se não tiverem a oportunidade de eleger representantes para aquele governo. Em um sentido mais amplo, ela expressa a ideia de que a autoridade de um governo para cobrar impostos é derivada do consentimento dos governados. Este é um princípio que parece estar em perigo com a PEC 45/2019 atualmente em acelerada tramitação no Congresso Nacional brasileiro.
O Art. 156-B da PEC da Reforma Tributária da Câmara dos Deputados (PEC 45/2019), como divulgado por seu relator em junho de 2023, prevê a criação de um Conselho Federativo do IBS dotado de autonomia financeira, orçamentária, administrativa e técnica (caput), responsável, de forma exclusiva, por definir normas infralegais e uniformizar a interpretação e aplicação da totalidade da legislação tributária (incisos I e II) relativas ao IBS, sua arrecadação, compensação e distribuição entre as suas diversas destinações (inciso III), além de ser a instância final de julgamento de contenciosos administrativos de todos os entes federativos (inciso IV). Não é pouca coisa.
Este Conselho Federativo, constituído por representantes técnicos dos estados, municípios e Distrito Federal, além de uma estrutura própria ainda a ser criada, terá atribuições administrativas tipicamente de natureza executiva, legislativa e judiciária, na medida em que tanto se encarregará de propor leis e editar normas infralegais de aplicação imediata, quanto interpretará a totalidade da legislação do IBS e sua aplicação e as disputas administrativas com os contribuintes (contencioso tributário) ou mesmo entre os entes. Este novo arranjo tem potencial para afetar amplamente o pacto federativo, a representatividade popular e a relação entre tributação e o princípio democrático.
Perda de representatividade
A proposta atual parece desafiar o princípio de "Nenhuma taxação sem representação". Como proposto, o Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) seria estabelecido sem mecanismos efetivos de representação popular em suas decisões. Isso poderia impactar diretamente a vida e a economia de todos os brasileiros, sem que exista um controle popular adequado.
O Conselho Federativo, na prática, terá autoridade para definir e interpretar as regras tributárias legais e infralegais aplicadas ao IBS, bem como sua aplicabilidade e a resolução de eventuais conflitos. Este controle extenso será exercido por técnicos e burocratas do próprio Conselho, conforme as suas múltiplas autonomias e a complexidade inerente das matérias tributárias.
O próprio Conselho Federativo terá o poder de propor a Lei Complementar que instituirá o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), conforme previsto no artigo 156-A da proposta de reforma tributária. Este arranjo o coloca na posição de controlar todas as fases de elaboração de normas e possibilidades relacionadas à gestão do imposto, inclusa a sua arrecadação e destinação de recursos.
Esta Lei Complementar do IBS, a despeito da sua natureza complexa e abrangente e a rápida previsão de início de vigência da fase de transição da própria reforma tributária, provavelmente será aprovada rapidamente após a promulgação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma Tributária, a partir de sua propositura pelo próprio Conselho Federativo recém formado, sem que ocorra, novamente, o adequado processo legislativo, via nova supressão de instrumentos de discussão legislativa como audiências públicas, comissões e subcomissões temáticas e a limitação da discussão ou mesmo a aceitabilidade de emendas de forma não justificada.
Esta abordagem, além de representar direta afronta ao princípio representativo e a prática legislativa como esperada, deverá limitar a discussão adequada e aprofundada da proposta de Lei Complementar do IBS no Congresso Nacional, ao transferir as discussões mais relevantes ao grupo dos membros fundadores do Conselho Federativo que, na prática, e sem mandato popular algum, terão o poder e o privilégio de definição da proposta da Lei Complementar que irá a plenário, atropelando-se os mecanismos de sua discussão democrática como, aliás, tem ocorrido na proposta de reforma tributária sob análise.
Os mecanismos de tramitação de uma Reforma Tributária tão abrangente e impactante que, posteriormente, devem ser seguidos quando da elaboração de sua Lei Complementar, não podem ser suprimidos.
A proposta atual da PEC não apenas atinge o princípio da representatividade popular naquilo que propõe em seu conteúdo, em especial no que se refere a seu modelo de Conselho Federativo com evidente afronta o pacto federativo, mas também é ruim na medida de sua prática legislativa, posto que está, sem o rito adequado, na iminência de sua ida a plenário.
Fere-se, portanto, as boas práticas de nossa democracia representativa não apenas em seu trâmite, mas em seu conteúdo e aplicabilidade, na medida em que ofende o pacto federativo brasileiro no que propõe, em especial na forma como prevê a atuação de seu Conselho Federativo, notadamente por sua afronta ao princípio da competência tributária plena e a autonomia dos entes federados.
A centralização de poderes de decisão sobre questões tributárias e fiscais no Conselho Federativo do IBS, mediante uma reforma tributária e lei complementar que virá em sequência, formuladas sob práticas legislativas sem os adequados ritos e discussão ampla na sociedade, devem, muito provavelmente, restringir de forma indevida a capacidade dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios quanto à propositura e execução de suas próprias políticas fiscais, em prejuízo de toda a sociedade e, em particular, aos fiscos estaduais e municipais.
Além disso, ao limitar a expressão do poder político representativo quando de sua propositura e conforme se dará a aplicação de suas regras, se aprovada, a proposta de Reforma Tributária diminui em definitivo a representatividade popular na definição de relevantes políticas fiscais e regras tributárias, o que é inequívoco retrocesso institucional.
A proposta atual pode não apenas centralizar o poder tributário e fiscal em um órgão técnico e burocrático, - o Conselho Federativo do IBS -, mas também consolidará práticas legislativas não adequadas ao princípio democrático definido na Constituição Federal de 1988, com prejuízos permanentes ao país.
Agressão ao pacto federativo
A proposta da PEC 45/2019 agride o pacto federativo brasileiro, na medida em que impede os entes federados de instituírem e arrecadarem seus impostos ou mesmo de editarem normas específicas decorrentes de sua manifestação de competência e autonomia, sempre que houver choque com as amplas funções e atribuições definidas como privativas do Conselho Federativo, que centralizará, assim, poderes de decisão sobre questões tributárias e fiscais tipicamente relacionadas às competências normativas e autonomias de entes federados, reduzindo a expressão desses poderes políticos representativos da população, tanto para os Estados e para o Distrito Federal, quanto para os Municípios, que ficarão integralmente vedados de formularem políticas fiscais próprias.
Em caso de discordância com as decisões do Conselho Federativo, caberá recurso apenas à justiça (STJ) (artigo 105, I, “j”). Ou seja, as vedações e restrições à competência e autonomia dos entes federados serão a eles impostas sem que se obedeça o adequado processo de discussão centrado no princípio democrático e na representatividade popular e sim nas decisões do próprio Conselho Federativo, dotado que será de garantias constitucionais expressas para exercício exclusivo de poderes tipicamente de entes federativos, com seus membros executivos com formação exclusivamente técnica e não representativos da população (artigo 156-B, § 2º, V e VI).
Isso levará a uma desconexão entre as políticas tributárias e fiscais impostas nacionalmente e as realidades locais, pois as decisões tomadas a nível do Conselho Federativo, mesmo quando colegiadas, não asseguram que sejam consideradas as particularidades e necessidades específicas de cada região e cada ente federativo afetado, que dirá os anseios e desejos de suas populações, através de decisões de sua representação política legitimamente eleita, o que significa um modelo que estimula o litígio e a desarmonia dos entes federados e o Conselho Federativo, ou mesmo entre entes federados, ou a subserviência reservada aos incapazes, sempre que houver discordância com as determinações emanadas pelo Conselho Federativo. Trata-se de um modelo eminentemente autoritário e, por isso mesmo, fundamentado em princípios não democráticos.
Centralização excessiva de poder
A centralização excessiva do poder pode levar a uma perda de controle e eficiência. O Conselho Federativo do IBS se tornará uma entidade poderosa e burocratizada, com controle exclusivo sobre uma ampla gama de questões tributárias e fiscais. Isso pode levar a atrasos, ineficiências, desperdícios e falta de flexibilidade. Além disso, a proposta de financiar o Conselho através de um percentual da arrecadação do imposto pode criar incentivos para o aumento da carga tributária, sem um controle adequado por parte dos contribuintes.
Desconexão com as necessidades e realidades locais
Cada Estado e Município do Brasil tem suas próprias necessidades e realidades. A padronização da legislação tributária pode não levar em conta as diferenças regionais, levando a políticas fiscais que não atendam às necessidades de todas as regiões. Por exemplo, uma regra fiscal que faça sentido em um estado industrializado pode não ser apropriada em um estado com uma economia baseada na agricultura.
Risco de concentração de recursos
A criação do Conselho Federativo traz riscos advindos da concentração de recursos e de critérios de sua destinação nas mãos do próprio Conselho ou mesmo de entes específicos, o que poderia enfraquecer a autonomia fiscal dos demais estados e municípios, na medida em que previsões generalistas de compensação de valores serão detalhadas pelo próprio Conselho, a partir de regras por ele definidas, seja na formação de Fundos específicos, como o previsto no artigo 159-A da proposta, seja na medida em que a gestão da arrecadação e sua distribuição é toda do próprio Conselho Federativo. Além disso, o financiamento do Conselho através de uma percentagem da arrecadação do imposto representa a destinação de recursos da arrecadação do IBS para si, em detrimento dos entes federados, potencialmente prejudicando serviços locais e infraestrutura.
Em conclusão, é fundamental para qualquer democracia que a capacidade de um governo para cobrar impostos derive do consentimento dos governados. A proposta do Conselho Federativo na PEC 45/2019 levanta sérias preocupações sobre representatividade e sobre o princípio de "nenhuma taxação sem representação". Como tal, é crucial que esta proposta seja cuidadosamente analisada e debatida, para garantir que não viole esses princípios fundamentais.
Custos de implementação e manutenção
Outro aspecto crítico a considerar é o custo significativo de implementação e manutenção de um órgão novo e vasto como o Conselho Federativo do IBS. A instalação de um órgão dessa magnitude exigirá uma infraestrutura considerável, incluindo instalações físicas, tecnologia da informação, contratação e treinamento de pessoal, e custos administrativos contínuos.
Para fornecer um paralelo, podemos considerar o Tribunal de Contas da União (TCU), uma das maiores organizações de auditoria pública do país. De acordo com o orçamento federal, em 2021, o orçamento autorizado do TCU foi de cerca de R$ 1,4 bilhão. A criação do Conselho Federativo do IBS provavelmente exigiria um orçamento significativamente maior, considerando suas funções mais amplas, sua escala nacional e sua plena autonomia de auto organização e gestão, além de que as estruturas estaduais e municipais permaneceriam intocáveis, na medida em que são formadas por carreiras específicas de administração tributária, já constituídas.
Além de que a previsão do Conselho ser financiado por um percentual da arrecadação do novo imposto distribuído a cada ente federativo implica numa redução na receita disponível para os entes federativos, impactando suas capacidades de prestação de serviços públicos.
Ademais, os custos de transição não devem ser ignorados. A mudança dos sistemas tributários atuais para um novo sistema unificado de imposto sobre bens e serviços pode ser uma tarefa complexa e cara, envolvendo despesas significativas para toda a sociedade em termos de tempo, recursos financeiros e humanos.
Em um momento em que muitos governos estão lutando para equilibrar seus orçamentos e a economia nacional ainda está se recuperando dos efeitos da pandemia, os custos de implementação e manutenção do Conselho Federativo do IBS podem representar um fardo financeiro substancial. Portanto, é essencial que se realize uma análise custo-benefício completa e rigorosa antes de se tomar uma decisão final quanto à atual proposta.
Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia.
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