30/10/2023

Trânsito de Mercadorias – A minha porta de entrada na SEFAZ


Márcia Libório Fraga Lima (*)

 

Estávamos em maio de 1994. Entrei naquele ônibus, em partida para meu primeiro dia de trabalho na Secretaria da Fazenda, carregando todas as expectativas que uma novata pode ter.

Havia a alegria de ter ingressado na carreira de auditora fiscal, afinal, uma conquista de uma bancária que sonhava alçar voos, mas, havia também, as apreensões, de como seria o trabalho em um Posto Fiscal.

A localização da unidade para qual fui designada não era perto, e, assim, percorri um longo caminho. O ônibus serpenteou pela estrada passando por mais de uma dezena de cidades, cruzando a Chapada Diamantina de leste a oeste, até chegar ao Posto Fiscal que ficava a cerca de 600 Km de Salvador. Foi quando o motorista avisou:

- Moça, o Posto Fiscal de Ibotirama!

Tomei minha bagagem, abrindo caminho pelo corredor do ônibus e desci. Passava da meia-noite, estava muito escuro, era uma noite sem lua, poucas estrelas e muito mais nuvens no céu. O ônibus retomou o seu caminho e levou consigo a única luz artificial que havia.

Evidentemente, nem se pode imaginar lanterna de celular naquele momento, afinal, o ano era 1994.

Fiquei no meio da estrada na escuridão total, e então percebi que a coragem tinha seguido com o ônibus. Quis ainda correr atrás do mesmo e desistir de ficar ali, mas ele já ia bastante longe.

Ficamos eu e minhas sacolas, escutei o silêncio que a cidade nunca nos permite escutar. Apenas a canção dos grilos e sapos coaxando de algum charco próximo.

Apesar do medo e do desconforto naquele momento, consegui evocar a razão. Olhei para o distante Posto Fiscal e vi uma diminuta luz tremulante, mas, entre mim e as instalações do Posto havia um matagal intransponível. E agora?

Só me restou uma saída: gritar, e eu gritei muito:

- Ô fiscal!!!  Ô FISCALLLLL!! E sacudia os braços, e nada.

Botei uma sacola em cima da outra, subi, repeti tudo de novo. Nada. O jeito era dar a volta, procurando o caminho livre até o Posto. Respirei fundo, peguei as sacolas, a pasta com o regulamento, além da bolsa e fui. A cada parada, para descansar, pensava por que coloquei tantas coisas nas sacolas, uma vontade crescente de deixar tudo ali mesmo.

O peso parecia aumentar com o caminhar. Posso me desfazer do quê? Talvez o cortinado, mas ele não pesa quase nada; o travesseiro, não mesmo, ele era velho e adoro travesseiro velho, e assim eu resolvi prosseguir sem me desfazer de nada. Finalmente, após uma verdadeira cruzada, cheguei aos pés da escada do Posto, quando então surge no alto um policial com a arma em punho.

-Sou auditora!  Gritei, levantando as mãos.

-Ahn!! Eu bem pensei que havia descido alguém do ônibus. Disse o policial. Quer ajuda com as sacolas?

- NÃO PRECISA! Retruquei, pensando no que passei, com raiva. Por que raios não ajudou antes? Mas ele apanhou as sacolas e subiu as escadas carregando-as.

Entrei na sala principal do posto, o módulo de trabalho, e deparei-me com um cenário dantesco, uma atmosfera desanimadora, com uma luz de candeeiro, papéis para todos os lados, notas fiscais, regulamentos, carimbos, numa desordem de fazer gosto. O colega fiscal estava sentado, com as pernas no balcão, todo desalinhado e desgrenhado. Quando me viu, levantou-se no susto e desatou a falar:

- Foi bom você ter chegado, para ver as nossas condições de trabalho que enfrentamos aqui. Auditora nova, né? O gerador quebrou há três dias e nada de conserto até agora. Como podemos trabalhar assim? Já foi todo mundo da equipe embora, não temos o que fazer sem luz.....

Pronto, estava posta a minha primeira responsabilidade como auditora fiscal: consertar o gerador! E eu só queria uma cama para esticar o corpo e esperar amanhecer o dia. Com o tempo, soube me adaptar, enfrentando as dificuldades que aparecessem, e principalmente criando boas amizades e dando muita risada das situações que surgem em Posto Fiscal.

Desde então já se passaram vinte e nove anos trabalhando na Sefaz, e, como em toda relação longa, amando-a e detestando-a, mas que ninguém fale mal dela na minha frente (só os íntimos podem fazê-lo).

Hoje, já avisto a porta de saída. Serei, então, a novata na aposentadoria, e novas expectativas surgirão assim como as apreensões, mas o que é a vida senão seguir por etapas diferentes e aproveitar todas elas?

Tenho o sentimento de missão cumprida, uma ponta de saudades e a convicção de que construí muitas amizades.

(*) Auditora Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia
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