Trânsito de Mercadorias – A minha porta de entrada na SEFAZ
Estávamos em maio de 1994. Entrei naquele ônibus, em partida para meu primeiro dia de trabalho na Secretaria da Fazenda, carregando todas as expectativas que uma novata pode ter.
Havia a alegria de ter ingressado na carreira de auditora fiscal, afinal, uma conquista de uma bancária que sonhava alçar voos, mas, havia também, as apreensões, de como seria o trabalho em um Posto Fiscal.
A localização da unidade para qual fui designada não era perto, e, assim, percorri um longo caminho. O ônibus serpenteou pela estrada passando por mais de uma dezena de cidades, cruzando a Chapada Diamantina de leste a oeste, até chegar ao Posto Fiscal que ficava a cerca de 600 Km de Salvador. Foi quando o motorista avisou:
- Moça, o Posto Fiscal de Ibotirama!
Tomei minha bagagem, abrindo caminho pelo corredor do ônibus e desci. Passava da meia-noite, estava muito escuro, era uma noite sem lua, poucas estrelas e muito mais nuvens no céu. O ônibus retomou o seu caminho e levou consigo a única luz artificial que havia.
Evidentemente, nem se pode imaginar lanterna de celular naquele momento, afinal, o ano era 1994.
Fiquei no meio da estrada na escuridão total, e então percebi que a coragem tinha seguido com o ônibus. Quis ainda correr atrás do mesmo e desistir de ficar ali, mas ele já ia bastante longe.
Ficamos eu e minhas sacolas, escutei o silêncio que a cidade nunca nos permite escutar. Apenas a canção dos grilos e sapos coaxando de algum charco próximo.
Apesar do medo e do desconforto naquele momento, consegui evocar a razão. Olhei para o distante Posto Fiscal e vi uma diminuta luz tremulante, mas, entre mim e as instalações do Posto havia um matagal intransponível. E agora?
Só me restou uma saída: gritar, e eu gritei muito:
- Ô fiscal!!! Ô FISCALLLLL!! E sacudia os braços, e nada.
Botei uma sacola em cima da outra, subi, repeti tudo de novo. Nada. O jeito era dar a volta, procurando o caminho livre até o Posto. Respirei fundo, peguei as sacolas, a pasta com o regulamento, além da bolsa e fui. A cada parada, para descansar, pensava por que coloquei tantas coisas nas sacolas, uma vontade crescente de deixar tudo ali mesmo.
O peso parecia aumentar com o caminhar. Posso me desfazer do quê? Talvez o cortinado, mas ele não pesa quase nada; o travesseiro, não mesmo, ele era velho e adoro travesseiro velho, e assim eu resolvi prosseguir sem me desfazer de nada. Finalmente, após uma verdadeira cruzada, cheguei aos pés da escada do Posto, quando então surge no alto um policial com a arma em punho.
-Sou auditora! Gritei, levantando as mãos.
-Ahn!! Eu bem pensei que havia descido alguém do ônibus. Disse o policial. Quer ajuda com as sacolas?
- NÃO PRECISA! Retruquei, pensando no que passei, com raiva. Por que raios não ajudou antes? Mas ele apanhou as sacolas e subiu as escadas carregando-as.
Entrei na sala principal do posto, o módulo de trabalho, e deparei-me com um cenário dantesco, uma atmosfera desanimadora, com uma luz de candeeiro, papéis para todos os lados, notas fiscais, regulamentos, carimbos, numa desordem de fazer gosto. O colega fiscal estava sentado, com as pernas no balcão, todo desalinhado e desgrenhado. Quando me viu, levantou-se no susto e desatou a falar:
- Foi bom você ter chegado, para ver as nossas condições de trabalho que enfrentamos aqui. Auditora nova, né? O gerador quebrou há três dias e nada de conserto até agora. Como podemos trabalhar assim? Já foi todo mundo da equipe embora, não temos o que fazer sem luz.....
Pronto, estava posta a minha primeira responsabilidade como auditora fiscal: consertar o gerador! E eu só queria uma cama para esticar o corpo e esperar amanhecer o dia. Com o tempo, soube me adaptar, enfrentando as dificuldades que aparecessem, e principalmente criando boas amizades e dando muita risada das situações que surgem em Posto Fiscal.
Desde então já se passaram vinte e nove anos trabalhando na Sefaz, e, como em toda relação longa, amando-a e detestando-a, mas que ninguém fale mal dela na minha frente (só os íntimos podem fazê-lo).
Hoje, já avisto a porta de saída. Serei, então, a novata na aposentadoria, e novas expectativas surgirão assim como as apreensões, mas o que é a vida senão seguir por etapas diferentes e aproveitar todas elas?
Tenho o sentimento de missão cumprida, uma ponta de saudades e a convicção de que construí muitas amizades.
(*) Auditora Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia
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