O caso do João Valente
Ainda me lembro de muitos casos contados pelos mais velhos, inclusive do caso do João Valente, que morava na fazenda do meu tio-avô João Gomes. Este sim um homem corajoso que matava onça até de susto no dizer lá do povo mais velho da região do povoado Tanque Novo. Um dia esse meu tio-avô, que era muito chegado a uma caçada de onça, preparou umas armadilhas, no dizer lá deles, “esperas”, nuns grotões bem longe da sede da fazenda. Para ser mais preciso o local se chamava Boqueirão da Serra das Confusões. Era uma área de difícil acesso e só ia lá quem tinha algum negócio a fazer ou uma obrigação muito séria.
João Valente, que adquiriu a alcunha de valente tão somente por ter ferido e matado, com uma peixeira, um cabra durante a Festa da Desobriga no povoado da Tranqueira, feita pelo padre Jerônimo, ainda não tinha enfrentado nenhuma onça nas caçadas feitas pela turma da fazenda. Depois de armadas as “esperas”, tinham de ser vistoriadas a cada três dias.
Na noite véspera do terceiro dia, meu tio João Gomes chamou o João Valente e lhe deu a incumbência de fazer a vistoria. Para tanto, explicou-lhe direitinho a localização das três armadilhas e o que devia ser feito durante o trajeto. Na realidade, meu tio queria mesmo era se certificar de que o roteiro seria cumprido e que João não voltaria do meio da estrada, dando o trabalho por realizado. Nas “esperas” eram colocados rifles do tipo “papo amarelo” armados na altura certa, para que o tiro atingisse a cabeça da onça, de sorte que estourasse os miolos da “marvada” levando-a à morte instantânea. A razão das visitas serem feitas a cada três dias era porque a finada levava de um a dois dias para começar a decomposição, o que aumentava a possibilidade de outras criaturas menores se aproximarem para comer a carniça, inclusive os urubus, que eram os mais perigosos, pois tinham a capacidade de estragar o couro. E a razão maior da caçada era exatamente o couro. Para aqueles homens rudes da caatinga, a pele da onça pintada era o maior troféu que podiam ganhar. A pintada era uma predadora voraz que naquela época dava muito prejuízo aos criadores. Comia bezerros, criações pequenas, galinhas e – se facilitasse – até uma criança. Era considerada uma inimiga mortal.
Recebidas as recomendações, João, antes de dormir, ainda teve um dedo de prosa com os outros vaqueiros, para se orientar melhor e ter certeza de que no dia seguinte faria o trajeto completo. Zequinha da Zefa, mateiro de larga experiência na lida da fazenda e das caçadas, homem de confiança do Velho, disse assim meio de brincadeira e meio sério: “João, vancê vai topar com a onça vivinha da silva”. Outros vaqueiros ainda soltaram uns gracejos, a conversa foi esfriando, o sono chegando, e logo todos trataram de dormir. João foi deitar matutando com as palavras do Zequinha, pensando lá com os seus botões: “Será que ele quis dizer que eu posso encontrar a danada baleada e acuada pronta para me dar o bote?”.
João teve um sono atormentado por sonhos ruins: sempre aquela imagem da gatona com os dentes arregalados, as garras quase tocando a sua garganta, mas por sorte, quando chegava neste ponto do sonho, ele acordava todo assustado suando mais que tampa de cuscuzeiro no final do cozimento. Parecia até os tempos em que tinha sofrido com a maleita. Arregalava os olhos tentando enxergar na escuridão. Mas era tudo breu. Levava um bom tempo até ele perceber que tudo não passava de um sonho ruim. Depois de muito custo, voltava a conciliar o sono, tentando ter pensamentos bons para ver se não sonhava mais com a maldita. Mas era pegar no sono e o sonho “disgramado” vinha com mais intensidade – parecia tudo real. Numa destas vezes em que acordou, João pensou: “Amanhã bem cedinho eu vou falar para Seu João Gomes me liberar desta empreitada besta e mandar o Zequinha mesmo, que já está acostumado com a labuta de onça”. Mas logo caía na realidade e voltava atrás com os seus pensamentos, imaginando o que os seus companheiros iriam pensar dele.
No sonho seguinte, João ficou todo feliz. A onça não aparecia e sim a figura de uma bela mulher, que tão linda lembrava a moça da folhinha do calendário, deixado por um mascate que passou por ali muito tempo atrás. No começo do sonho a tal mulher aparecia bem longe, que mal dava para divulgar as feições. Depois vinha andando bem devagarzinho, toda enrolada nuns panos coloridos, que dava gosto de ver. À medida que se aproximava é que ia dando para ver as feições e sentindo a fervura do sangue correr nas veias, igualzinho à noite em que dançou coladinho com a Raimunda, filha de Sinhá Chica Preta. Era uma sensação gostosa como se estivesse flutuando no ar. Dava até para sentir o cheiro perfumado da danada. À medida que a imagem do rosto da mulher se aproximava do seu, João tentava fazer um carinho, mas sentiu na cara umas fagulhas quentes de uma explosão terrível e o rosto da mulher maravilhosa se transformou na figura de uma onça, com os dentes arreganhados e as garras quase tocando a sua garganta. Foi o suficiente para que ele acordasse com aquele riozinho de água morna escorrendo entres as suas pernas. O medo faz coisa que até o cão duvida. Já desperto de todo, João fez uma jura solene de nunca mais homenagear ou olhar para aquela figura tinhosa da folhinha.
Quando a barra do dia começou a clarear, João pulou da rede aterrando os pés no chão, pegando o facão Collins velho de muita estimação e deu uma esticada até o fundo da casa onde ficava a cozinha. Tratou logo de botar águas para ferver e coar o café, pois àquela hora do dia não havia ainda ninguém de pé. Tomou o café com uns pedaços de macaxeira cozida de ontem, que estavam numa panela de barro na ponta do fogão. Foi à despensa onde apanhou uma rapadura já velha e meio melenta, destas feitas no engenho de Tio Policarpo. Juntamente com um embornal de farinha, da boa, feita no Fechadão, colocou tudo num alforje de couro, jogou na cacunda e tratou de ganhar a estrada, pois sabia que o dia ia ser longo. Foi andando num passinho moderado, nem muito ligeiro para não cansar, nem muito devagar, para não atrasar a viagem. Enquanto atravessava as veredas e os leitos dos riachos secos, onde as terras eram mais arenosas, as alpercatas de rabicho iam “salgando” a bunda. Nessa época do ano a seca castigava impiedosamente toda a região. Mas justamente aí residia a vantagem do caçador. Quando a água escasseava, a onça, como qualquer outro vivente da caatinga, tinha uma aguada determinada para beber. Por sua agilidade e mobilidade, a onça tinha acesso aos caldeirões que se formavam nos locais mais altos da serra e era lá no caminho para essas aguadas que se armavam as “esperas’. Quando o sol já ia a pino, João chegou à primeira armadilha e verificou que o rifle ainda estava armado. Espiou bem o carreiro e viu rastro de um tamanduá-bandeira, que pelas pegadas se via que era dos grandes. Logo a conclusão de que alguma coisa acontecera com a arma para não ter disparado, provavelmente o gatilho estava muito duro e não fora acionado com o impacto do tamanduá no cordel. Mas deixou tudo como estava e tratou de anotar tudo na cachola, para fazer a prestação de contas da empreitada sem cair em contradição.
A segunda espera, armada nas fraldas superior da serra, não muito distante da primeira, estava intacta, com o cordame esticado e reinava um silêncio meio sinistro de mau agouro. Nenhum rastro, nenhuma marca que indicasse que por ali tivesse passado bicho miúdo ou graúdo.
O sol já começava a dar sinal de declínio, quando João apressou o passo e começou efetivamente a subida para a terceira e última espera. Pelos cálculos que ele ia fazendo, deveria chegar à armadilha ainda com sol alto no céu, em condições de voltar à fazenda no mesmo dia, mesmo que chegasse com o escuro lá na sede. Ao se aproximar da entrada do boqueirão onde estava a última armadilha, porém, João sentiu um arrepio fino, meio esquisito que se espalhava pelo corpo inteiro e fugia ao controle do vivente – era aquela sensação ruim que se sente ante um perigo iminente. João tratou logo de acalmar o medo e desviar os pensamentos maus. E disse lá para ele mesmo: “Será alguma alma penada querendo aparecer? Ou é a mulher da folhinha do sonho de ontem?”. Mesmo arrastando estas dúvidas, prosseguiu.
A espera ficava por trás de uma ponta de pedra, de sorte que a mesma só era vista quando se chegava a uma distância de pouco mais de três metros. Quando João contornou a pedra, já destampou em cima da armadilha e teve a visão mais apavorante que um caboclo do sertão poderia ter: a onça estava deitada em cima da linha que acionava o gatilho do rifle, com o bote armado, os olhos arregalados e os dentões bem à amostra, bem como tinha aparecido na noite anterior. O cabra ainda ficou paralisado por alguns segundos, os cabelos levantado a aba do chapéu. Os joelhos querendo se curvar e aquela sensação de que a onça já começava a dar o impulso final para o ataque. Foi um volteio por sobre os calcanhares e João girou 180 graus pulando uma moita de xique-xique, rompendo por dentro dos marmeleiros, criando um atalho para pegar o carreiro mais na frente, sentindo a onça já soprando na sua nuca. O chapéu de palha sumiu entre as moitas. Os cabelos ouriçados pelo medo, parecia um cabeça de croata. Aí ele pensou: “Ou eu avoo ou esta bicha me come vivinho agora mesmo”.
A carreira foi tão louca que João, movido pela adrenalina do medo e sem coragem de olhar para trás, só parou quando chegou ao chiqueiro das cabras de Dona Juventina, que estava acocorada tirando leite de uma cabra para dar ao neto doente. Foi ela a primeira pessoa a ouvir o grito lancinante que João deu a estatelar no chão se estrebuchando, com um fio de sangue a escorrer do canto da boca. Quando D. Juventina chegou para acudir, viu que já era tarde, o homem já não respirava mais.
Assim morreu João Tranquilino. Esse era o nome de batismo do desinfeliz, que, mesmo com toda fama de valente, morreu se cagando de medo da onça e da morte.
O passamento de João foi um transtorno danado. Um corre-corre para arranjar roupas decentes para o defunto. O velório se deu lá mesmo na casa Dona Juventina, pois o falecido não tinha família constituída e morreu justamente na frente da sua casa. Na região do Tanque Novo quase todo mundo era Gomes ou aparentado.
O velório varou a noite toda, sempre regado a café, pinga e conversa fiada para o tempo passar e explicar o inexplicável: de que morreu Valente? A versão mais aceita era de que João tinha visto um lobisomem ou outra assombração mais feia. Ninguém tinha certeza de nada.
Tia Piauilina, esposa de Tio João Gomes, que sempre se gabou de não ter preconceito racial, principalmente com relação aos empregados e criados da fazenda, comentou: “Não te falei, João, que preto quando não é doido tem pereba na perna? Este morreu assim sem dar nenhuma explicação. E tinha as canelas sem nenhuma ferida. Lisinha.
O enterro foi logo na manhã seguinte, bem cedinho. O defunto foi carregado numa rede de coroa, armada sobre um varão de madeira longo, apoiado nos ombros de dois caboclos. Os comentários durante a caminha até o cemitério eram dos mais variados: “Já foi tarde”; “O cabra não era boa bisca”; “Lá tu vai acertar as contas com meu marido qui tu tirou a vida”. O enterro demorou pouco, pois o cabra realmente não era “boa bisca".
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