24/04/2024

Reforma Tributária de 2023 - Parte 7. Imunidades gerais alteradas

Introdução

Como se sabe, as imunidades tributárias gerais e específicas formam um dos lados do cinto protetivo do contribuinte na Constituição Federal. Sem ele o cidadão poderia ficar a mercê da mão pesada do Estado, este querendo implementar indiscriminadamente medidas visando o aumento incontrolável do tributo. É o que se chama no jargão tributário de sanha arrecadatória dos governantes de ocasião.

Vale lembrar que as hipóteses imunes guardam estreita correlação com colunas fundamentais da constituição: a imunidade recíproca com a forma federativa de estado; a imunidade dos partidos com a liberdade político-partidária; a imunidade sindical com a liberdade de associação; e assim sucessivamente.

Resgate-se também da memória que, ao contrário da isenção, cuja interpretação haverá de ser literal, pelo menos nos moldes do art. 111 do CTN (sem embargo da polêmica existente na doutrina e no Judiciário), as imunidades haverão de comportar interpretações ampliativas, pois o objetivo do constituinte é açambarcar o maior número juridicamente possível de situações cotejadas na regra imunizante. Veja-se por exemplo a imunidade do livro: as decisões judiciais atualizaram e alargaram a aplicação do dispositivo, estendendo-a para os e-books. [1]

A isenção, segundo a teoria clássica (há outras teorias importantes sobre este assunto, discussão cabível em outro estudo), consiste numa obrigação tributária cujo pagamento foi dispensado pelo ente tributante. A imunidade consiste numa barreira impeditiva de tributação, atrás da qual estão potencialmente hipóteses de incidência (se o óbice inexistisse) merecedoras  de tutela constitucional porque a exigência de tributos mitigaria o exercício de liberdades, direitos e princípios caros ao estado democrático de direito.

As alterações implantadas pelo legislador reformista positivam uma tendência jurisprudencial que vinha se confirmando nos tribunais de alçada superior, notadamente quanto às imunidades calcadas na liberdade de culto, além de sacramentar o entendimento  relacionado à extensividade da imunidade recíproca, designadamente quanto a determinadas pessoas jurídicas.

Por questões de sistematização expositiva, preferimos tratar das mudanças e do surgimento das imunidades específicas[2] noutra passagem do presente estudo, na intenção de evitar a fragmentação de raciocínios.

Dito isso, eis os dispositivos sob análise, na sua redação anterior e atual:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

...

VI - instituir impostos sobre:

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

Redação anterior:

b) templos de qualquer culto;

Redação atual:

b) entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes;

...

Redação anterior:

§ 2º - A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.

Redação atual:

§ 2º A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo poder público e à empresa pública prestadora de serviço postal, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.

...

§ 4º - As vedações expressas no inciso VI, alíneas "b" e "c", compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.

Imunidade religiosa.

Originariamente, o que se chama de imunidade dos templos tem o intuito de preservar a liberdade de culto, de ser permitido a pessoa o livre exercício das doutrinas religiosas, desde que não comprometam outros direitos fundamentais, como a igualdade de gênero, o direito de ir e vir, a liberdade de expressão, entre outros. Portanto, a rigor, não é qualquer culto que estará tutelado pela garantia constitucional.

De fato, a imunidade traduzida na expressão templos de qualquer culto dava margem a interpretações em diversos tons, desde aquelas mais restritivas, admitindo-se poucas inserções nas situações protegidas de tributação, até aquelas mais ampliadas, dentro das quais estariam imunes qualquer situação que, mesmo de esguelho, tivessem alguma ligação com o culto religioso.

Na esteira do crescimento vegetativo de denominações cultuais no país, a representação desta ala junto ao parlamento naturalmente ganhou força e prestígio político. Daí o movimento de modificar o texto constitucional – dissipando velhas dúvidas – de que a imunidade não recairia tão-somente nos templos, mas se estenderia para outras organizações ligadas à igreja[3].

Neste contexto, o constituinte reformista acrescentou à expressão templos de qualquer culto os comandos de que a proteção tributária alcançava não só as entidades religiosas ligadas ao culto, mas também as suas organizações assistenciais e beneficentes.

E manteve o texto anterior no sentido de a regra imunizante abraçar especificamente para o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas. Por conseguinte, permaneceu um certo subjetivismo para localizar o alcance da desoneração tributária, deixando para o operador do direito dar a devida conformação ao que se entende por finalidades essenciais desempenhadas pelas entidades religiosas e respectivas organizações assistenciais e beneficentes[4].

Muitas questões práticas podem ser suscitadas ainda a propósito da imunidade de culto. Se a exploração de estacionamento por parte de entidade religiosa está ligada às suas finalidades essenciais, quando a receita obtida com o serviço é revertida em favor das atividades cultuais. Se o imóvel comprado para abrigar a residência da família do líder religioso está dentro da imunidade, máxime quando o bem está em nome da pessoa jurídica. Se as rendas coletadas a partir da comercialização de bebidas alcoólicas por parte da entidade religiosa podem ser atraídas pela imunidade, ainda que o produto da venda seja revertido em obras sociais patrocinadas por organizações beneficentes ou assistenciais. Se os rendimentos havidos com aplicações financeiras efetuadas a partir de receitas auferidas com a colaboração financeira de seguidores gozam da proteção tributária.

Aguardemos o novo movimento jurisprudencial.

Imunidade postal

Uma segunda mudança implementada na reforma tributária no que tange a imunidades gerais diz respeito à circunstância de na norma constitucional incluir-se expressamente a empresa pública prestadora de serviço postal como beneficiária da proteção.

É que muito se discutia se a Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) poderia desfrutar da garantia excludente da tributação. A jurisprudência sempre oscilou no tratamento jurídico a ser dado aos Correios, não só no campo do direito tributário, como em outras áreas da ciência jurídica. Mas já tinha definido que referida pessoa jurídica fruía do benefício constitucional.

Questão importante que se ventilava era saber se a imunidade era totalmente subjetiva, ou seja, no sentido de beneficiar a ECT em toda e qualquer atividade por ela desempenhada, respeitante à tributação do patrimônio, da renda e dos serviços vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes, ou só os serviços postais – e exclusivamente a receita e renda consequentes de sua prestação – estariam desonerados.

Isso porque a referida empresa, além de serviços postais, também executa serviços de logística. Neste prisma, açambarcando toda a sua atividade, as empresas privadas que estivessem também no ramo logístico ficariam em situação de concorrência desigual, de modo a trazer à baila o comprometimento dos princípios da isonomia tributária e da liberdade de iniciativa da atividade econômica.

Todavia, o STF assentou o entendimento de que os Correios gozam da imunidade recíproca, de sorte que a mudança do texto constitucional só veio confirmar este entendimento. Já há vários pronunciamentos da Corte Superior nesta direção. Cite-se, como ilustração, o proferido a pretexto da discussão do Tema 402, em sede de repercussão geral:

Órgão julgador: Tribunal Pleno

Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI

Julgamento: 12/11/2014

Publicação: 11/02/2015

 

Ementa

EMENTA Recurso extraordinário com repercussão geral. Imunidade recíproca. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Peculiaridades do Serviço Postal. Exercício de atividades em regime de exclusividade e em concorrência com particulares. Irrelevância. ICMS. Transporte de encomendas. Indissociabilidade do serviço postal. Incidência da Imunidade do art. 150, VI, a da Constituição. Condição de sujeito passivo de obrigação acessória. Legalidade. 1. Distinção, para fins de tratamento normativo, entre empresas públicas prestadoras de serviço público e empresas públicas exploradoras de atividade econômica. 2. As conclusões da ADPF 46 foram no sentido de se reconhecer a natureza pública dos serviços postais, destacando-se que tais serviços são exercidos em regime de exclusividade pela ECT. 3. Nos autos do RE nº 601.392/PR, Relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes , ficou assentado que a imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, CF, deve ser reconhecida à ECT, mesmo quando relacionada às atividades em que a empresa não age em regime de monopólio. 4. O transporte de encomendas está inserido no rol das atividades desempenhadas pela ECT, que deve cumprir o encargo de alcançar todos os lugares do Brasil, não importa o quão pequenos ou subdesenvolvidos. 5. Não há comprometimento do status de empresa pública prestadora de serviços essenciais por conta do exercício da atividade de transporte de encomendas, de modo que essa atividade constitui conditio sine qua non para a viabilidade de um serviço postal contínuo, universal e de preços módicos. 6. A imunidade tributária não autoriza a exoneração de cumprimento das obrigações acessórias. A condição de sujeito passivo de obrigação acessória dependerá única e exclusivamente de previsão na legislação tributária. 7. Recurso extraordinário do qual se conhece e ao qual se dá provimento, reconhecendo a imunidade da ECT relativamente ao ICMS que seria devido no transporte de encomendas.

Tema

402 - Imunidade tributária recíproca quanto à incidência de ICMS sobre o transporte de encomendas pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT.

Tese

Não incide o ICMS sobre o serviço de transporte de encomendas realizado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT, tendo em vista a imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, da Constituição Federal. Obs: Redação da tese aprovada nos termos do item 2 da Ata da 12ª Sessão Administrativa do STF, realizada em 09/12/2015.

Ou no Tema 644:

Órgão julgador: Tribunal Pleno

Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI

Julgamento: 15/10/2014

Publicação: 19/02/2015

Ementa

EMENTA Recurso extraordinário. Repercussão geral reconhecida. Tributário. IPTU. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Imunidade recíproca (art. 150, VI, a, da CF). 1. Perfilhando a cisão estabelecida entre prestadoras de serviço público e exploradoras de atividade econômica, a Corte sempre concebeu a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos como uma empresa prestadora de serviços públicos de prestação obrigatória e exclusiva do Estado. 2. A imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, da Constituição, alcança o IPTU que incidiria sobre os imóveis de propriedade da ECT e por ela utilizados. 3. Não se pode estabelecer, a priori, nenhuma distinção entre os imóveis afetados ao serviço postal e aqueles afetados à atividade econômica. 4. Na dúvida suscitada pela apreciação de um caso concreto, acerca, por exemplo, de quais imóveis estariam afetados ao serviço público e quais não, não se pode sacrificar a imunidade tributária do patrimônio da empresa pública, sob pena de se frustrar a integração nacional. 5. As presunções sobre o enquadramento originariamente conferido devem militar a favor do contribuinte. Caso já lhe tenha sido deferido o status de imune, o afastamento dessa imunidade só pode ocorrer mediante a constituição de prova em contrário produzida pela Administração Tributária. 6. Recurso extraordinário a que se nega provimento.

Tema

644 - Imunidade tributária recíproca quanto ao Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana – IPTU incidente sobre imóveis de propriedade da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT.

Tese

A imunidade tributária recíproca reconhecida à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos — ECT alcança o IPTU incidente sobre imóveis de sua propriedade e por ela utilizados, não se podendo estabelecer, a priori, nenhuma distinção entre os imóveis afetados ao serviço postal e aqueles afetados à atividade econômica. Obs.: Redação da tese aprovada nos termos do item 2 da Ata da 12ª Sessão Administrativa do STF, realizada em 09/12/2015.

Considerações finais.

No momento em que produzimos o presente texto, dia 24/04/2024, há notícias de que o projeto de lei complementar disciplinador da reforma tributária de 2023 conterá mais de 500 (quinhentos) artigos e mais de 300 (trezentas) páginas[5].

Não sabemos ainda o teor da proposta a ser apresentada ao Congresso Nacional. Mas a notícia permite especular que, haja vista a enorme dimensão do texto normativo,  provavelmente alguns pontos vinculados às imunidades religiosa e postal encontrarão nela disciplina, não obstante inexistir previsão expressa da EC 132/2023 de que tais garantias serão detalhadas em lei complementar.

O próximo estudo irá abordar o Imposto Seletivo (IS) e suas principais características.

[1] Neste sentido, veja-se a decisão do STF a propósito do Tema 593.

[²]A exemplo da previsão do art. 9º, §1º, incisos I e IV da EC 132/2023, se é que podem ser tratadas como imunidades puras.

[3] Para alguns o pensamento chegava ao absurdo de ficar adstrita ao prédio físico no qual se dava as celebrações religiosas, numa espécie de imunidade objetiva.

[4] Muitos defendem o ponto de vista de que as finalidades essenciais precisam estar elencadas nos atos constitutivos da entidade religiosa e, ainda assim, merecer uma análise apurada do ente tributante.

[5] Vide o link: https://www.estadao.com.br/economia/regulamentacao-reforma-tributaria-500-artigos-300-paginas/

(*) Diretor de Assuntos Fiscais e Tributários do IAF Sindical

(**) Ex-Diretor Jurídico do IAF Sindical

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