Marcos Antonio da Silva Carneiro[1]
Vladimir Miranda Morgado[2]
Não faz muito tempo que ouvimos autoridades governamentais atestarem que os servidores públicos são parasitas, apegados nocivamente à estrutura do Estado, a sugarem dela recursos que poderiam ser direcionados para necessidades sociais emergentes.
Chegou-se a dizer que, em função dos constantes reajustes salarias do funcionalismo, “o dinheiro não chega ao povo”, para usar a fala do Ministro Paulo Guedes. As declarações posteriores minimizadoras, tentando aliviar o peso das acusações, apenas fez operar a velha tática de, ao disseminar a mentira, deixá-la germinar para contaminar a opinião pública. Naquela altura, o estrago já estava feito, os servidores impiedosamente jogados contra boa parte da população.
Vemos esta prática grassar no mundo inteiro, a mais notável delas aplicada de lado a lado nas últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos, para onde o qual o Ministro da Economia insinuou emigrar, caso suas exigências de modelo econômico não fossem adotadas no Brasil.
A partir desta pândega, intensificou-se um movimento midiático no intuito de desmoralizar a imagem do servidor público, tido quase como abjeto perante a opinião nacional, obstinado em conquistar mais e mais ajustes remuneratórios, mas desidioso no cumprimento de suas tarefas cotidianas, de entregar prestação de qualidade ao cidadão brasileiro.
Lembraram ter esta classe de cidadãos estabilidade no emprego e sob esta proteção agirem com desleixo, como se inexistisse na Constituição Federal e leis adjacentes mecanismos de combate à insuficiência de desempenho na função, sujeita até a pena de demissão.
Tal estratégia vem a reboque de uma política que intenta reduzir substancialmente o arcabouço estatal brasileiro, na linha ultraliberal de deixar praticamente toda a movimentação de riqueza nas mãos de agentes econômicos particulares.
Não um Estado Mínimo, como se desejou outrora, mas um Estado microscópico, amorfo, patologicamente reduzido.
Havia no passado, é correto, abusos da atuação do Estado, a desempenhar tarefas em atividades eminentemente privadas, a exemplo do ramo hoteleiro. Hoje, de modo geral, o cenário é bem outro.
Atualmente, paira a profecia de que o Estado será desmantelado e, neste desmonte, milhares de servidores sofreriam um grave processo de envilecimento.
Entretanto, o Estado e seus servidores precisam continuar seu mister constitucional de prestigiar a democracia e a segurança jurídica, a efetuarem políticas públicas que assegurem a paz social, a incolumidade fisiológica da população, a prestação jurisdicional, a educação de qualidade, a coleta de recursos para financiamento das atividades estatais.
Ao meio desta expectativa, eis que o mundo inteiro é tomado pela pandemia do coronavírus. Prontamente, o governo foi convocado a lutar contra esta doença, em nível federal, estadual e municipal, acionando em suas fileiras milhares de servidores públicos que, incondicionalmente, redobraram seus esforços para atenuar as agruras do povo brasileiro.
Um plexo de reflexões surgiria no seio da comunidade nacional, a questionar se os servidores seriam mesmo os parasitas do país.
Neste sentir, que dizer dos parasitas servidores da saúde, médicos, enfermeiros, auxiliares e demais agentes sanitários, a desempenharem corajosamente suas incumbências junto aos pacientes molestados pela virose e, não raro, salvando vidas heroicamente?
Que dizer dos parasitas servidores da segurança pública, membros das Forças Armadas, policiais civis e militares, agentes municipais e penitenciários, a resguardarem a integridade física da população, a disciplinarem a circulação das pessoas e a evitarem que uma onda de violência e vandalismo tome conta do país?
Que dizer dos parasitas servidores da educação, professores e demais agentes públicos ligados ao setor, a garantirem que o alunado continue desenvolvendo o seu aprendizado, inclusive através das várias iniciativas de ensino a distância espalhadas nas redes sociais?
Que dizer dos parasitas servidores do Ministério Público, promotores, procuradores de justiça e demais integrantes do parquet, todos alertas a qualquer gesto que busque contrariar os direitos coletivos e difusos da sociedade?
Que dizer dos parasitas servidores do Judiciário, magistrados e demais componentes deste Poder, de prontidão para, ante qualquer recidiva governamental, restabelecerem imediatamente quaisquer direitos que atinjam o brasileiro, aflito em querer preservar a sua saúde e a de seus familiares?
E, em especial, por ser afeto à área destes articulistas, que dizer dos servidores integrantes do fisco federal, estadual e municipal, empenhados em viabilizar os recursos necessários à manutenção da estrutura sanitária brasileira, na medida exata da crise econômica que adveio como efeito colateral causado pela Covid-19, a orientar o contribuinte na condução do cumprimento das suas obrigações tributárias?
Ou noutras palavras, fazer o dinheiro chegar ao povo, ao contrário da declaração ministerial atrás mencionada?
Que dizer de todos estes parasitas que colaboram com vigor, direta ou indiretamente, para que seus concidadãos se livrem da morte, do colapso do sistema de saúde, da carência de leitos de UTI, EPIs e medicamentos?
Tantas perguntas visam tornar este texto muito mais reflexivo do que assertivo, em linha diversa daqueles que preferiram demonstrar a importância econômico-financeira do servidor público dentro da sociedade.
Os fatos dispensam os números econômicos. Prescindível dizer o quanto tais servidores colaboram na construção de um Estado moderno. Agora não importa em quanto o fisco ajuda na arrecadação de recursos. Importa saber agora quantas vidas estão sendo salvas.
Vemos que, longe do parasitismo, os servidores constituem parte indissociável do hospedeiro. Sem o servidor público o Estado não sobrevive. Não avança. Sem o servidor o Estado não consegue proteger os cidadãos.
Parasita e hospedeiro são, na verdade, faces da mesma moeda, hardware e software da mesma máquina. Um depende do outro para servir a população, diminuir as desigualdades, garantir recursos para que segurança, educação e saúde sejam efetivadas com completude.
Há quem diga que o planeta Terra pós pandemia não será o mesmo. Surgirá um novo ser-humano. Mais solidário, mais empático, mais grato ao seu semelhante. Nunca estaremos tão próximos, depois de ficarmos tão afastados.
Dentro deste clima, certamente brotará a convicção de que o servidor público exerce com destreza seu papel social no país, erradicando de uma vez por todas este descrédito do qual foi vitimado e que ardilosamente quiseram inseminar na população brasileira.
Um novo despertar nos aguarda.
[1] Auditor Fiscal do Estado da Bahia, Presidente do IAF e Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSal.
[2] Auditor Fiscal do Estado da Bahia, Diretor Jurídico do IAF e Doutor em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidade Autónoma de Lisboa, título validado pela UFPE.
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