01/08/2013

Inconstitucionalidades do Simples Nacional

"A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito" (art. 1º, Constituição)
Renato Aguiar de Assis (*)

1 INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 irá comemorar, em outubro/2008, vinte anos de existência. A Magna Carta brasileira é uma constituição relativamente jovem em relação ao Direito Comparado (Constituição norte-americana possui 200 anos...) e o seu grande jubileu deve ser comemorado por todos os cidadãos brasileiros, pois todos eles são protagonistas da ?Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição?, proposta por Peter Häberle.
A sociedade nacional possui todas as razões para comemorar o ano da Constituição, celebrando orgulhosamente o dia da Constituição (patriotismo constitucional de Slernberger).
A Constituição Federal/88 constitui um paradigma para o constitucionalismo moderno pelos avançados textos (direitos fundamentais, proteção às minorias, estrutura de Estado, pluralismo político, ordem social...).
Com efeito, a Assembléia Nacional Constituinte conseguiu sintetizar o pluralismo social-político-cultural-econômico existente na sociedade brasileira e ao mesmo tempo, limitou o príncipe (Leviatã) ao controlar o poder estatal (?accountability?).

2 SIMPLES NACIONAL (LC 123/06)

A Lei Complementar 123/06 instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa (ME) e da Empresa de Pequeno Porte (EPP), conhecido como Simples Nacional ou Supersimples. Cumpre recordar que as microempresas e as empresas de pequeno porte representam aproximadamente 70% das empresas nacionais.
O Simples Nacional, ao entrar em vigor em 1º de julho de 2007, estabeleceu que todos os impostos serão recolhidos de forma unificada, através de documento único de arrecadação, que será repartido entre os Estados, DF e Municípios. O Simples Nacional abrange oito tributos, assim divididos: seis Federais (IRPJ, IPI, Contribuição Social sobre o Lucro, COFINS, PIS e a Contribuição Social Patronal); um Estadual (ICMS) e um Municipal (ISS).
Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios foram compelidos a participar do Simples Nacional, ao passo que ao contribuinte é facultado sua adesão ao sistema.
Ressalte-se, ainda, que a Lei Complementar 123/06 encontra-se eivada de vícios jurídicos que impedem a plena eficácia do Princípio Federativo, conforme exposto abaixo no item 4 (inconstitucionalidades do simples nacional).

3 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

?A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito? (art. 5º, XXXV, CF/88)

Controle de Constitucionalidade consiste na demonstração da compatibilidade vertical entre a Constituição e as demais normas infraconstitucionais. Portanto, todo e qualquer ato normativo ou legislativo que contrariar a Constituição Federal deverá ser declarado inconstitucional. Este mecanismo de controle decorre do Princípio da Supremacia da Constituição.
Historicamente, são antigas as raízes da supremacia constitucional, que reportam à Roma antiga, Atenas e ao pensamento de São Tomás de Aquino, bem como à Constituição dos EUA e à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (preâmbulo).
Efetivamente, o instituto do ?Judicial Review? (controle de constitucionalidade) surgiu nos EUA com o ?leading case?: Marbury v. Madison (1803), decidido pelo voto do juiz Marshall (?Chief Justice?).
Podem-se extrair três lições importantes desse julgamento histórico:
Primeira, a Constituição é a norma superior.
Segunda, são nulas as leis contrárias à Constituição.
Terceira, é tarefa do Poder Judiciário verificar a adequação das leis à Constituição.
A começar deste marco histórico, instituiu-se o Controle Difuso da Constituição realizado por qualquer juiz ou tribunal, a partir de um caso concreto (modelo EUA). De fato, nesse julgamento a Suprema Corte dos EUA assentou de vez o Princípio da Supremacia da Constituição e o instituto do ?Judicial Review?.

4 INCONSTITUCIONALIDADES DO SIMPLES NACIONAL

O Brasil optou, como forma de Estado, por Estado Federal (federação) com vistas a preservar a autonomia dos entes federados e a unidade nacional. Constitui característica fundamental de uma federação a Autonomia Política dos Estados, Distrito Federal e Municípios, que se traduz na Auto-Administração (corpo de servidores próprios: prepostos fiscais, procuradores...), no Autogoverno, na Auto-Organização e na Autolegislação (compete às entidades federadas elaborar as leis estaduais, distritais e municipais nos limites das competências fixadas pela CF/88). Com efeito, as leis estaduais (ICMS), municipais (ISS) estão no mesmo nível hierárquico das leis federais (IR...). Elas só estão abaixo da CF/88 e das Constituições Estaduais (no caso dos Estados) e das Leis Orgânicas (DF e Municípios).
No juízo mínimo de delibação, diversos dispositivos da LC 123/06 contrariam ? inicialmente - o Princípio Federativo (arts. 1º, 18, 25, 29 e 32, da CF/88). Senão, vejamos:
?... processos relativos a tributos e contribuições abrangidos pelo Simples Nacional serão ajuizados em face da União, que será representada em juízo pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional? (art. 41, LC 123/06).
?Os créditos tributários oriundos da aplicação desta Lei Complementar serão apurados, inscritos em Dívida Ativa da União e cobrados judicialmente pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional? (Art. 41, § 2º, LC 123/06).
Da simples leitura destes dispositivos legais, constata-se nítida invasão do princípio Federativo, pois retira dos Estados/DF/Municípios a competência para intervir em ações anulatórias de cobrança ou mesmo na hipótese de Mandado de Segurança em assuntos pertinentes aos seus respectivos impostos (ICMS/ISS). Assim sendo, as futuras ações serão ajuizadas em face da União Federal na Justiça Federal. A Procuradoria da Fazenda Nacional-PFN irá representar em juízo a União, ainda que envolva questão relativa ao ICMS ou ISS, e não mais os procuradores estaduais (execução fiscal...) ou municipais, esvaziando por completo o disposto no artigo 132, da Lei Maior, ?Os procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas..., exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas? (art. 132, CF/88). Cumpre recordar que a previsão do art. 41, § 2º, LC 123/06 é mitigada pelo parágrafo terceiro da Lei, que reza: ?Mediante convênio, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá delegar aos Estados e Municípios a inscrição em dívida ativa estadual e municipal e a cobrança judicial dos tributos estaduais e municipais a que se refere esta Lei Complementar? (Art. 41, § 3º, LC 123/06). Todavia, este abrandamento legal não possui o condão de afastar o vício inconstitucional intrínseco à norma.
Outra afronta ao postulado da Federação encontra-se no parágrafo primeiro do artigo trinta e nove, que prevê:
?O Município poderá, mediante convênio, transferir a atribuição de julgamento exclusivamente ao respectivo Estado em que se localiza? (art. 39, § 1º, LC 123/06).
Nestas condições, o Município poderá delegar aos Estados-Membros o julgamento dos processos administrativos fiscais-PAF para os órgãos estaduais, tais como: CONSEF-BA, TIT-SP, dentre outros. Esta regra fere a autonomia dos Municípios (art. 29, da CF/88), pois afasta a competência municipal para julgar administrativamente o seu respectivo imposto (ISS).
Note-se, ainda, que o art. 30, I, da CF/88 outorga aos Municípios a atribuição de legislar sobre assuntos de interesse local. Em razão disto, a vocação tributária põe-se no âmbito da autonomia política local. Ao disciplinar a matéria, cuja competência é exclusiva dos Municípios (art. 30, III, CF/88), a lei do Supersimples fere a autonomia desses entes, mitigando-lhes a capacidade de Auto-Organização e de Autogoverno e limitando a sua autonomia política assegurada pela Constituição brasileira.
A lei do Simples Nacional também usurpou da competência privativa dos Estados/DF/Municípios para legislar sobre direito Tributário, evidenciando verdadeiro óbice ao exercício de um direito constitucionalmente garantido, que extrapola os limites que lhe são próprios, configurando abuso do poder legiferante. Desse modo foi usurpada a competência material dos Estados, Distrito Federal e Municípios para organizar e manter os tributos, bem como a competência legislativa para dispor sobre dívida ativa, cobrança, execução. O ordenamento jurídico nacional confere aos Estados, DF e Municípios iniciativa privativa para instaurar processos administrativos fiscais em tema concernente à tributação.
A título de exemplo, cito uma situação real ocorrida comigo. Em dez/07, numa ação fiscal, deparei-me com a seguinte situação paradoxal: o contribuinte fiscalizado (indústria de móveis), optante do Simples Nacional desde a sua implantação, jamais havia recolhido um centavo sequer ao Erário. Somente a parte devida referente ao ICMS da Bahia já acumulava um montante em torno de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais). Tentei, sem sucesso, lavrar o competente auto de infração, tendo em vista que o fisco baiano estava aguardando uma posição Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN) sobre a matéria (lavratura de autos de infração, parcelamentos...).
Fica, assim, demonstrado que os Estados-Membros, bem como o Distrito Federal e Municípios encontram-se atados diante dessa nova legislação tributária. Pior. Esses entes federados estão perdendo expressivas receitas orçamentárias em virtude da mora federal em regulamentar a matéria. Trata-se de um disparate constatado no dia-a-dia fiscal.
Por fim, caso o Supremo Tribunal Federal venha a ser provocado sobre o assunto (via ADIN ou ADECON) deverá, salvo melhor juízo, declarar a inconstitucionalidade dos artigos supracitados por violação ao Princípio Federativo. Todavia, dever-se-á aplicar no caso o instituto da modulação dos efeitos (efeito ex-nunc ou pro-futuro) tendo em vista a presunção de boa-fé dos contribuintes.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado Democrático de Direito, consagrado pela Carta Política de 1988, reconhece o Princípio Federativo. Desde então, todas as relações jurídicas encontram-se sob sua égide, funcionalizadas aos valores definidos pelo Texto Constitucional.
O Sistema Tributário Nacional é caracterizado pelo forte Centralismo Tributário em que um ente político (União) arrecada a maior fatia da receita fiscal (IR, Contribuições, IPI...) e repassa a parte dos demais entes (Estados/DF/Municípios), evidenciando um federalismo cooperativo. A União, na seara tributária, exerce a competência residual para instituir outros tributos não previstos na Lei Fundamental (ex: antiga CPMF). Entretanto, o poder de legislar da União está limitado pelos princípios da Constituição da República que assegura a autonomia dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios. Por outro lado, não é admissível, sob pretexto da simplificação de tributos, que lei federal selecione aleatoriamente determinados impostos (ICMS, ISS) de competência de outros entes federados para estabelecer normas específicas relativas ao tratamento favorecido e diferenciado dispensado às ME/EPP, tais como: modalidades de apuração, recolhimento de tributos e obrigações acessórias, em flagrante violação ao princípio Federativo.
Vê-se, dessa forma, que há na lei do Simples Nacional diversos preceitos que afrontam o disposto na Constituição Federal, que estabelece o Princípio Federativo, evidenciando, no caso, inquestionável inconstitucionalidade material e formal; embora seja reconhecido que a lei beneficiou o contribuinte (diminuição da carga tributária), propiciou geração de empregos ao desburocratizar o sistema tributário nacional (simplificação de procedimentos fiscais) e, finalmente, reduziu o custo Brasil.
Com o advento da CF/88, configura-se o nascimento de uma Nova Ordem Constitucional, convocando os operadores do direito a um processo interpretativo que ofereça nova proteção a institutos tão caros à democracia como é o caso do Princípio Federativo, antes confinado a um simples controle formal de constitucionalidade, sob pena de transformar os entes da federação em meros auxiliares da União, desvirtuando a intenção do legislador constitucional.

(*) Auditor fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia

Com citar este artigo:
ASSIS, Renato Aguiar. Inconstitucionalidades do Simples Nacional. Salvador: Instituto dos Auditores Fiscais do Estado da Bahia-IAF, maio. 2008. Disponível em

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