30/04/2020

Voto de qualidade e prejuízo na arrecadação

Marcos Antonio da Silva Carneiro

Auditor
Fiscal do Estado da Bahia, Presidente do IAF e Mestre em Políticas Sociais e
Cidadania pela UCSal.

Vladimir Miranda Morgado

Auditor
Fiscal do Estado da Bahia, Diretor Jurídico do IAF e Doutor em Ciências
Jurídicas e Políticas pela UAL/UFPE.

Sabem os operadores do direito
tributário que, efetuado o lançamento de ofício, dispõe o sujeito passivo do
direito de abrir uma discussão dentro do próprio ente tributante, travada nos órgãos
administrativos de julgamento, de estrutura colegiada, em regra, e com
instâncias recursais de apreciação.

Não raro, sobretudo no segundo
grau, tais estruturas de julgamento são instaladas sob composição paritária, ou
seja, preveem julgadores integrantes do fisco e julgadores representantes dos contribuintes,
em igual número, estes últimos indicados por instituições que defendem os seus
interesses. Assim, pode haver julgadores oriundos de associações patronais, mandatárias
de empresários do agronegócio, industriais e firmas ligadas ao comércio e serviços.

À vista do art. 28 da Lei n°
13.988/2020, alterador do decreto que disciplina o processo administrativo
tributário federal, mudou-se o critério de desempate nas votações do Conselho
Administrativo dos Recursos Fiscais (CARF). Significa dizer que, sendo este
órgão regido pela paridade, contando com igual número de julgadores fazendários
e julgadores delegatários dos contribuintes, passa a prevalecer a tese destes
últimos quando houver empate no número de votos – extinguindo-se o chamado voto
de qualidade.

Há quem cogite ter havido
inconstitucionalidade formal nesta iniciativa legislativa, via emenda
aglutinativa, por enxertar matéria estranha à temática abrigada na citada lei, ligada
a procedimentos regulatórios de transações tributárias e não tributárias. Apontam,
inclusive, o risco de tal dispositivo retroceder para alcançar decisões favoráveis
ao Tesouro que contaram com o voto de qualidade, suscitando pedidos de
restituição, caso os créditos tributários tenham sido quitados. Isto é o que
pensa a PGR, conforme NOTA TÉCNICA 2CCR Nº 01/2020 e OFÍCIO Nº 57/2020/ASSEP/PGR.

Todavia, o foco do presente
texto será bem outro.

Apesar da alteração legislativa
não afetar os Estados-membros que, pela cláusula pétrea do pacto federativo, possuem
autonomia para organizar a sua estrutura administrativa sem interferência da
União, inclusive o seu aparelho julgador e respectivo modo de funcionamento, é
possível que, a partir d’agora, venham pressões políticas visando inserir também
tal critério de desempate em leis estaduais e municipais.

Relembre-se que a mudança
recaiu sobre lei federal. Logo, não é de âmbito nacional, de sorte que incabível
a sua aplicação automática nos processos administrativos em tramitação nos
Estados e Municípios.

Num primeiro olhar, pode
parecer justa a medida, pois da “acusação fiscal”, como muitos preferem
denominar, surge a defesa do contribuinte, de sorte que, havendo o mesmo número
de votos pendentes para este e para o fisco, há que se adotar a máxima
universal do in dubio pro reo.

Sem embargo, o raciocínio aqui
cabível é diferente. De há muito resultam superadas as duas teorias de que, em
se tratando de tributo, havendo dúvida, deve-se julgar a favor do fisco ou julgar
a favor do contribuinte. Por ser de caráter obrigacional, a relação
jurídico-tributária está regida pela igualdade dos sujeitos, ambos sob o
império da lei. E isto se aplica ao direito tributário material e ao direito
tributário formal, do qual fazem parte, neste último, o lançamento e seu debate
administrativo. Resta saber como tal argumento teria cabimento em matéria de
penalidades pecuniárias, situação que demandaria, por si só, um texto apartado,
sobretudo à luz dos comandos do art. 112 do CTN.

Andou mal o legislador ao implantar
esta novidade, somente festejável se a instância administrativa fosse o último
portal de garantia dos direitos do sujeito passivo. Isto porque, bem examinado,
não se instaura no processo administrativo uma lide no sentido jurídico e
completo do termo. Enquanto estiver o lançamento sendo discutido nesta seara, inexiste,
a rigor, conflito de interesses, porquanto fisco, contribuinte e sociedade
desejam, nesta fase e a um só tempo, ajustar o lançamento tributário, aferi-lo
para saber se ele tem condições de exequibilidade, ou, ao contrário, merece ele
ser proscrito. Daí não se falar em honorários sucumbenciais e custas no processo
administrativo, dentre outras especificidades.

Ademais, se a alteração legal pretendeu
beneficiar os contribuintes, este efeito não os atingiu indistintamente, na
medida em que os órgãos julgadores só costumam ter representantes classistas na
instância recursal, em regra inalcançável pelos pequenos e médios contribuintes
que, normalmente autuados em valores menores, não podem, por questões de
alçada, socorrer-se da composição paritária.

A despeito da presunção de
legitimidade do lançamento, a mudança trouxe, em verdade, o estabelecimento de um
grave desequilíbrio entre os sujeitos da relação jurídico-tributária, pois se
de um lado tem o autuado o direito de, mesmo vencido na órbita administrativa,
requestionar toda a matéria perante o Judiciário, do outro o fisco não goza de
idêntica prerrogativa processual, visto que, perdedor na seara administrativa, não
tem como devolver a discussão para pronunciamento judicial. Exceto se, neste
último caso, houver prova robusta de vício de vontade (fraude, coação etc.), na
esteira da Súmula 473 do STF, ou a decisão definitiva contrariar posição desta
Corte ou do STJ, sedimentada posteriormente. Para o ente público, no particular,
não há que se falar em inafastabilidade da jurisdição, mesmo sabendo-se da
previsão in abstrato do art. 156, IX, do CTN.

Registre-se que, quando
provocadas, as instâncias administrativas de julgamento assumem o papel
fundamental de atuarem no “controle de qualidade” dos lançamentos de ofício, de
modo a preparar a execução fiscal após uma análise minuciosa por parte de
julgadores experimentados. Neste espaço, exerce o Estado o seu papel de autotutela.
Tanto assim é que, em geral, independente de quem votou a favor ou contra, as
estatísticas de julgamento administrativo apontam para uma boa quantidade de
autos de infração nulos, procedentes em parte ou improcedentes.

Neste esquadro, soaria
precipitado querer-se com isto eliminar a participação dos julgadores classistas.
Estes são fundamentais para apreciarem as questões tributárias por outro ângulo,
diverso do fazendário, a oferecerem alternativas para se encontrar a melhor
solução a ser dada ao caso concreto. Acontecesse isto e seguramente haveria
perda na qualidade dos veredictos administrativos.

Não se ignora que, pela
composição paritária, frequentemente o julgador indicado pelo sujeito passivo acompanha
a tese do fisco e vice-versa, o julgador fazendário acompanha a tese pró
contribuinte. O que se deve alertar é que, com o novo critério de desempate
estabelecido, passe a existir uma tendência da categoria econômica tentar convencer
os representantes dos contribuintes a aderirem às teses defensivas, pelo menos
nos processos de grande monta ou que envolvam questões jurídicas inovadoras
levantadas pelo fisco. Mesmo à luz do princípio da imparcialidade – de
intrincada implicação psicológica.

Frise-se que qualquer série
estatística tendente a justificar o baixo índice de decisões pelo voto de
qualidade ficará irremediavelmente prejudicada em função desta recentíssima lei
que, por implementar um novo critério, poderá suscitar empates em volume muito
maior ao verificado até então.

Pensamento recíproco não se
aplica aos representantes fazendários. Têm eles o dever de agir de modo tal que
não deixe passar para o crivo do Judiciário decisões que se submetam ao ônus da
sucumbência, a gravar o erário com despesas desnecessárias e a evitar que
incursões judiciais inadequadas sejam promovidas pelo poder público. Como servidor
público sujeito a aferição de responsabilidades que acarretem até a perda do
cargo efetivo, compete a ele promover uma reanálise acurada dos atos
administrativos da exigência tributária.

Entregar aos representantes
dos contribuintes o desenlace nos julgamentos compromete  a prerrogativa do ente público revisar os
atos administrativos por ele praticados, haja vista uma intromissão desmedida
do particular que, pela voz e voto de um representante julgador, acabe
solapando o poder tributante estatal.

Assim, na hipótese de recrudescer
o movimento voltado para espraiar este critério definidor das decisões para
leis estaduais e municipais, melhor será antecipar-se para, preservando-se a
participação de julgadores indicados pelos contribuintes na composição dos
conselhos administrativos, deixar a sua estrutura com a quantidade ímpar de
componentes, com maior número para os integrantes fazendários. Só assim, com
este número desigual, o equilíbrio ficaria restaurado, por mais paradoxal que isso
possa parecer.

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