"Todos os tiranos começaram, a nossos olhos, por absorver as
funções todas, estatais, confundindo-as em suas mãos. É o
passo decisivo para a morte da liberdade."
Prof. Manoel Ribeiro.
Tema recorrente na mídia, a reforma tributária vem sendo recentemente apontada como uma das soluções para o crescimento econômico. E é. Mas antes de tratarmos especificamente desse tema, cabe nos perguntarmos qual o papel da matriz tributária na economia, a que serve. É um mero instrumento de captação de recursos para o setor público ou se presta para outras finalidades? Serve apenas para regular a relação fisco-contribuinte, ou serve, também para promover o crescimento econômico, o desenvolvimento e a inclusão social? E, por fim, essa dicotomia entre desenvolvimento e exclusão é uma imposição do nosso modelo de crescimento?
A atividade financeira do Estado reflete um de seus papéis na regulação da vida em sociedade. Para John Locke (1632-1704) o papel do Estado é, fundamentalmente, preservar a propriedade, mediante a cessão de poderes pelos indivíduos, de sorte a lhes possibilitar ".. a conservação recíproca da vida, da liberdade e dos bens a que chamo de "propriedade" ". A visão do filósofo, defensor das monarquias liberais, era de que ao Estado competiria preservar não a propriedade de alguns contra os outros, mas assegurar, a todos o direito de apropriar-se do mínimo suficiente para sua sobrevivência, preservar o direito de cada um sobre o seu próprio trabalho e sobre os bens e direitos livremente adquiridos com a aplicação da força de trabalho, própria ou de terceiros.
Na visão de Engels, o Estado é um poder necessário para mediar a luta de classes:
"O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impõe à sociedade de fora para dentro; (…) é a confissão de que essa sociedade se enredou em uma irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essa classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da "ordem". Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado."
Estas visões filosóficas não são suficientes para pacificar a questão. Temos que nos perguntar quanto do esforço estatal deve estar dirigido aos já enriquecidos, aos que já detém riquezas mais que suficientes para sua sobrevivência, e quanto do empenho do Estado deve ser dirigido para os mais pobres, para os excluídos da vida social digna.
Aqui se impõem dois pressupostos também de inspiração filosófica: primeiro o da igualdade de todos, a partir do estado de natureza; segundo, de que a idéia de Justiça precede a idéia de Direito. Partindo destes pressupostos temos que o papel fundamental do Estado é o de garantir a igualdade de todos e de traduzir, por intermédio do Direito, a idéia de justiça. Em outras palavras, o Direito deve realizar a Justiça. No plano da economia, portanto, caberia ao Estado assegurar à todos, oportunidades iguais de inserção econômica e social. Por isso a Dra. Misabel Derzi afirma que o princípio do Estado Democrático de Direito tem duas raízes, a segurança jurídica em que se assenta o Estado e a justiça, a igualdade. E, como ensinou o Prof. Manoel Ribeiro, "Nenhuma instituição social que se apóia no assentimento do público pode durar se se encontrar em flagrante contradição com a moral e a justiça." E, mais: "Democracia, sem critérios éticos, é condenável como qualquer sistema totalitário abrumador da dignidade da pessoa humana. Ou serve à justiça ou não se legitima.". E, ainda: "O Estado não será se o seu poder sofrer concorrência. É o poder maior e irresistível. Mas existem acima dele as forças morais, as idéias do justo, da virtude e de outras noções que sempre orientaram os homens."
A dicotomia entre desenvolvimento e exclusão não existe como realidade imutável. É cabe ao Estado modificar continuamente o status quo, para a minimizar. Se estivessem todos os homens em situação de igualdade, caberia ao Estado prover a todos do mesmo quinhão de bens e serviços. Se, no entanto, a exploração dos recursos naturais e do trabalho levou a uma disparidade na distribuição das riquezas, evidentemente a igualdade inicial se desfez e cabe ao Estado, para garantia da igualdade, promover a inclusão dos excluídos, o desenvolvimento dos que ficaram para trás. A promoção do desenvolvimento econômico pelo Estado, portanto, pode e deve servir como instrumento de redução das disparidades de oportunidades. Ou seja, pode ser o modo pelo qual se aproximam os extremos, se reduz distância entre ricos e pobres e se caminha, portanto, para uma situação tendente à igualdade. E para isto é preciso estabelecer como foco do desenvolvimento a inserção econômica e social dos excluídos.
Olhando para a história recente do Brasil vemos que a decisão entre pagar a dívida pública e promover o desenvolvimento econômico tem privilegiado a primeira opção: gerar superávits para pagamento da dívida externa. Para esse fim, a matriz tributária foi distorcida, recursos destinados a investimentos públicos foram direcionados ao pagamento da dívida externa e à formação de um elevado estoque de divisas, em detrimento do combate à pobreza. Para Elder Linton Alves de Araújo e José Honório e Accarini:
"O mais drástico de todo o mecanismo é que os prazos de rolagem são curtos, provocando pressão sobre as contas públicas. Por outro lado, os juros elevados inibem a acumulação produtiva, incentivando a acumulação financeira. Há uma retração da base fiscal e, consequentemente, maior pressão para redução dos gastos e investimentos governamentais, comprometendo a alocação dos recursos fiscais para programas sociais e de infra-estrutura".
Não se advoga aqui a moratória, ou o calote da dívida, decisão insana, de triste memória. Mas observamos que no outro extremo, a decisão de levar às últimas conseqüências a decisão de pagar a dívida pública implica na indisponibilidade de recursos fiscais para a promoção do crescimento econômico e do desenvolvimento. E a quem compete essa decisão? Ao príncipe ou ao povo? Se compreendermos que o poder do príncipe decorre da cessão que o próprio povo faz de parcela dos seus direitos para que ele realize seus objetivos comuns, a decisão deve ser do príncipe, mas ela não poderá contrariar o fundamento da delegação: realizar os objetivos sociais, deles o maior, a igualdade.
É verdade que boa parte do aumento da carga tributária tem sido destinado ao financiamento da seguridade social, o que indica que ao lado do objetivo de pagar a dívida financeira, também muito tem sido feito para o pagamento da "dívida social". Isso nos leva à percepção de que a solução, no plano fiscal, está em estabelecer um gradiente que permita atender aos dois objetivos. Mas onde está o ponto de equilíbrio?
"As questões que requerem escolhas e envolvem valores e objetivos de difícil compatibilização são, de um lado, o principio econômico da eficiência, como melhor alternativa diante de recursos escassos, e, de outro, o principio social da eqüidade, da busca de justiça social. O dilema aparece ao se priorizar o econômico, com ênfase no mercado e sua eficiência, tendo-se aceleração do crescimento econômico, com oportunidades de geração de emprego e renda, todavia com o risco de concentração de renda e riqueza. Por outro lado, ao se priorizar o social, com ênfase na eqüidade, vislumbra-se a redução das disparidades entre regiões, classes e indivíduos, porém resultando eventualmente em crescimento econômico mais lento ou de menor conteúdo tecnológico".
Se retomarmos a questão da igualdade e da justiça, certamente responderemos que o ponto de equilíbrio será aquele que propiciar o pagamento da dívida pública sem, contudo, comprometer o objetivo de realizar os objetivos sociais. E onde estão explicitados esses objetivos sociais?
No processo de reinstitucionalização democrática do poder no Brasil, de que resultou a Constituição Federal de 1988, o povo, por seus representantes – Assembléia Nacional Constituinte -, estabeleceu como objetivos fundamentais dos cidadãos a vida, a liberdade e a dignidade igual para todos.
Já no seu preâmbulo a Constituição da República Federativa do Brasil fixa como objetivos:
"… instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social …".
O disposto no preâmbulo se confirma logo a seguir no artigo 3º, que discrimina os objetivos fundamentais da República: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ora, é pressuposto inafastável dos estados constitucionais que as leis, os arranjos institucionais e políticos devem realizar a Constituição, de modo que não se torne mero exercício semântico e sim um comando a ser obedecido por todos.
A contenção do distanciamento, apontado por Engels, entre o Estado e a sociedade foi buscado pelo constituinte de 1988, por meio de uma maior distribuição de poder entre o governo central e os governos subnacionais, especialmente pela distribuição dos encargos e pela discriminação das rendas públicas, dando aos governantes mais próximos da sociedade maior poder de decisão sobre a alocação dos investimentos e dos gastos públicos; e, via de conseqüência, aos governados, maior possibilidade de influir nesse processo de decisão. O saudoso administrativista baiano, vice-reitor da Universidade Católica do Salvador, Prof. Manoel Ribeiro, escrevia, já em 1953, que "Tanto mais perfeito será o Estado democrático quanto mais os governantes receberem o influxo dos governados, acatando suas determinações".
No entanto, essa tentativa de fortalecimento do federalismo fiscal vem sendo frustrada por vários motivos. Um deles são as vinculações constitucionais, que limitam o redirecionamento de importantes receitas fiscais, especialmente as vinculadas à educação e à saúde. Outro relevante motivo é a reconcentração de poder político no governo central por meio do deslocamento do enfoque do esforço fiscal da União, de receitas compartilháveis com os governos subnacionais, para receitas não compartilháveis. Ou seja, maior enfoque nas bases tributáveis por contribuições – não compartilháveis -, do que nas bases tributáveis por impostos – compartilhadas com estados e Municípios. Essa política, constante, de reconcentração do poder caracteriza uma verdadeira "guerra fiscal vertical" em contraposição a uma "guerra fiscal horizontal" entre os estados e entre os municípios.
Cabe aqui, como atual, a reprodução de parte da Exposição de Motivos n° 910, do Min. Otávio Gouveia de Bulhões ao presidente Castelo Branco, tendo em vista o reordenamento do Sistema Financeiro Nacional:
"Os que acompanham os problemas financeiros estão acordes na urgência de um reexame dos impostos da Federação, com o fim de instituir-se um sistema compatível com os requisitos do progresso econômico do País. A multiplicação e a acumulação das incidências tributárias, a despeito da separação formal dos impostos, dificultam e oneram a produção. Os empecilhos ao progresso estão se tornando alarmantes".
Repetindo parte do relatório, redigido com o concurso do Prof. Rubens Gomes de Souza e do Dr. Gilberto de Ulhoa Canto, para fundamentação da proposta de reforma constitucional de que resultou a Emenda Constitucional n° 18/65, o Ministro Bulhões se refere à superposição de tributos:
"Isto sem falarmos nas sobreposições de tributos, do mesmo ou de outro poder, economicamente idênticos, e disfarçados apenas pelas roupagens jurídicas de que o legislador os reveste. Pode-se mesmo dizer, sem exagero, que existem hoje, no Brasil, mais tributos formalmente distintos que fatores econômicos aptos a servir de base à tributação".
Um exemplo recente de sobreposição de tributos pelo mesmo ente tributantes é a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF. Considerando que a reinstituição do Imposto sobre Movimentações Financeiras – IMF como CPMF teve por objetivo não partilhá-la com os Estados, pode-se dizer, sem medo, que o travestimento do IMF em uma contribuição é um estupro ao desejo da Assembléia Nacional Constituinte de repartição das rendas de impostos federais, implícito no texto constitucional de 1988. Se todo ato administrativo normativo deve ter por fundamento a lei, como manifestação da vontade geral, que se dirá da vontade expressa ou implicitamente contida nos princípios constitucionais?
Considerando que os gastos governamentais e as demandas por obras de infra-estrutura são naturalmente crescentes, a não repartição das novas, e continuamente expansíveis, receitas da União e a ausência de uma política nacional consistente de desconcentração econômica e de investimentos em obras de infra-estrutura levou os Estados a uma busca frenética por investimentos privados. A competição fiscal por investimentos privados, que era baseada fundamentalmente em empréstimos subsidiados com recursos dos tesouros estaduais se tornou aguda a partir do momento em que os Estados, esgotadas as possibilidades de oferecer subsídios, passaram a conceder reduções na carga tributária do principal imposto estadual ? o ICMS – em troca da alocação de investimentos privados nos respectivos territórios.
Essa reação dos Estados se realizou por meio de uma agressiva política de incentivos fiscais ao setor privado, resultando na chamada "guerra fiscal", batalha que caminha rapidamente para o esgotamento, seja porque a adoção da mesma política por todos deixa de representar uma vantagem comparativa dos Estados competidores, seja pela tendência, recentemente revelada, de anulação sistemática, pelos Estados de origem, dos benefícios tributários não pactuados entre eles e os Estados destinatários dos bens e mercadorias incentivados.
Como já observado, a matriz tributária brasileira vem sendo progressivamente modificada. O esforço fiscal da União vem sendo fortemente concentrado sobre bases tributáveis também exploradas pelos Estados, o que traduz uma "guerra fiscal vertical", ou seja, uma batalha da União contra os Estados e seus municípios. Essa batalha se revela mais cruel porque um de seus objetivos mais fortes e evidentes é a redução relativa da partilha dos tributos federais com os governos subnacionais, comprometendo a capacidade de investimento público dos entes federativos.
A sistemática ocupação, pela União, do "território tributável" pelos Estados (consumo de bens e serviços), tem resultado em cada vez maior concentração de poder fiscal – e político – no governo central, e em menor poder fiscal e político, vale dizer, menor autonomia, dos governos subnacionais. E não é segredo para ninguém que a chamada "reforma tributária" em andamento no Congresso Nacional se propõe exatamente a tornar federal a competência para instituir e regulamentar o ICMS, mais importante fonte de receitas tributárias dos tesouros estaduais, das quais ¼ pertencente aos municípios. Acresça-se a isso que o ICMS tende se tornar um imposto de base ampla, nos moldes hoje praticados na União Européia, furtando aos Municípios sua base tributável – serviços.
Pelo que vemos, portanto, apesar de esforços esporádicos, aqui e ali, para a adoção de orçamentos participativos, no plano nacional estamos diante de uma caminhada inexorável de afastamento da sociedade da possibilidade de influir neste que é um dos mais típicos poderes do príncipe – o de expropriar riquezas dos indivíduos.
O Brasil tem o mérito de ter construído, apenas uma década após a 2ª Guerra Mundial, um dos melhores modelos do imposto sobre valor adicionado, de inspiração franco-germânica. Primeiro porque o próprio imposto traz a técnica da não cumulatividade, que faz o imposto repercutir para frente na cadeia de comercialização até ser suportado pelo contribuinte de fato – o consumidor final. Segundo porque estabelece um eficiente mecanismo de compartilhamento da base de tributação do imposto nas operações envolvendo mais de uma unidade federada. Pode-se dizer que o ICMS "costura a Federação". O maior exemplo deste efeito integrativo foi o estabelecimento de um conselho de autoridades governamentais para a solução de conflitos – o CONFAZ, que vem fazendo esta "costura" há décadas.
Mas, não se pode negar, o modelo de tributação do consumo no Brasil tem defeitos que exigem correção. O primeiro deles é o compartilhamento vertical das bases tributáveis entre três entes tributantes diversos – União, Estados e Municípios, o que impõe elevados custos aos contribuintes de direito – os empresários, o que afeta sua competitividade e a lucratividade de seus negócios. O segundo grande defeito é que a não cumulatividade ainda é parcial, o que importa em não exoneração integral de fases intermediárias de tributação, embora pela lógica do modelo a carga tributária final não possa exceder às alíquotas fixadas. O terceiro defeito é que o princípio constitucional da seletividade não tem sido observado.
O compartilhamento vertical das bases tributáveis do consumo entre a União, os Estados e os Municípios revela-se irracional por vários motivos. O primeiro desses motivos é que não se respeita o principio da especialização, segundo o qual, as tarefas estatais são repartidas em função dos papéis ou das responsabilidades que são constitucionalmente atribuídas a cada um dos segmentos estatais. Assim, cabe ao governo central a defesa do território e a declaração de guerra, o estabelecimento de acordos internacionais de comercio, a representação perante organismos internacionais. Nada mais natural que caiba ao mesmo governo a tributação do comercio exterior. Somente aos Municípios, a quem cabe cuidar da limpeza das ruas, da coleta de lixo, de ações ambientais de nível local, deve caber a tributação sobre a propriedade urbana. E assim por diante.
Na mesma linha de pensamento, revela-se irracional que governos subnacionais sejam responsáveis pela tributação da importação e da exportação. Especificamente no caso brasileiro, não há argumento válido que justifique a tributação pelos estados de importação de matérias primas industriais. Primeiro porque já há um ente político responsável pela regulação do comércio exterior e pela fiscalização das fronteiras internacionais do País – a União, que pode, sozinha, fiscalizar e arrecadar todos os tributos sobre comércio exterior, seja por direito próprio, seja por delegação dos Estados e dos Municípios. Segundo, porque a tributação das matérias primas oriundas do exterior, gerando créditos fiscais na entrada, em nada afeta a arrecadação tributária naquela fase da cadeia de comercialização, quando se trata de um imposto não cumulativo, como é o imposto estadual sobre mercadorias e serviços.
O exercício da capacidade tributária de dois diferentes entes tributantes sobre o mesmo fato só complica, burocratiza além da conta e gera custos desnecessários, seja para o estado, seja para os contribuintes. Mesmo em se tratando de importação de bens de uso final, por serem, também, objeto de interesse do Fisco federal, a responsabilidade pela fiscalização e pela arrecadação poderia ser concentrada na União. Observe-se que apenas aborda-se aqui a responsabilidade pelas tarefas de fiscalizar e arrecadar, que podem ser cometidas por um ente tributante a outro, sem que isso implique em delegação de competência, juridicamente impossível. Além de que, se a internação de bens oriundos do Exterior puder prejudicar a concorrência interna, tanto o Imposto de Importação pode servir como equalizador da carga tributária, com o repasse da arrecadação correspondente ao Estado de destino das mercadorias ou bens internalizados.
Assim, insisto, a tributação do comércio exterior deve ficar circunscrito à competência de um único ente estatal, desde que a carga tributária nas importações não seja inferior àquela incidente no mercado nacional e assim não prejudique a competitividade das empresas aqui instaladas. Esta unicidade de capacidade tributária sobre o comércio exterior será favorecedora de maior inserção do Brasil no mercado globalizado. E este ente estatal deve ser a União, face às suas responsabilidades, constitucionalmente previstas, no relacionamento externo do País.
Ainda discutindo a especialização, os Estados tem se especializado, ao longo de décadas, em tributar a circulação de mercadorias. Não se justifica, pois, que a base tributável produção-circulação de bens no mercado nacional seja dupla. Se o ICMS tivesse sido formatado para incidir sobre a produção e a circulação de bens e mercadorias, não haveria razão para a existência de um imposto federal sobre a produção – o IPI, tendo em vista que a escrita fiscal e contábil, assim como o documentário fiscal é o mesmo tanto para o IPI quanto para o ICMS. Observo que, enquanto a União dispõe de poucas centenas de agentes fiscais dedicados ao IPI, os Estados dispõem de muitos milhares de agentes fiscais fiscalizando a mesma base tributável. Vale salientar, não seria possível aos Estados fiscalizar a circulação de bens e mercadorias sem fiscalizar as empresas que os produzem, o que revela que a instituição do IPI pela União representa uma superposição de impostos sobre a mesma base.
Nada impediria o constituinte de atribuir aos Estados e, mesmo, aos municípios mais ricos, competência para instituir imposto sobre a renda auferida por seus cidadãos e empresas, como se pratica nos Estados Unidos, tendo chegado a atribuir aos Estados um adicional sobre o referido imposto. Mas a experiência demonstrou que a vocação dos Estados é mesmo para tributar a produção e a circulação de bens e serviços, no que já acumula décadas de experiência exitosa. Além disso, a tributação do consumo final das famílias muito se aproxima do imposto sobre a renda, pois pode ser entendida como uma "tributação sobre renda despendida". Como afirmou o Min. Otávio Gouveia de Bulhões:
"O imposto de consumo pode ser arrecadado em conjunto com o imposto de renda. Ambos os tributos aquilatam a capacidade de contribuição dos indivíduos, um pelo ângulo do recebimento da renda, o outro pelo ângulo de seu dispêndio".
Aliás, é bom lembrar que o ICMS é um imposto sobre o "consumo de fatores de produção" e não um imposto sobre consumo final, por fora, do tipo americano. O ICMS somente pode ser considerado um imposto sobre consumo, por causa do fenômeno da repercussão na renda das famílias.
Um outro defeito da tributação do consumo no Brasil se refere à cumulatividade inerente ao imposto com a configuração atual, seja pela cumulação de vários impostos, o que faz com que o ICMS incida sobre o IPI e sobre o ISSQN nas fases de circulação dos bens e serviços. A Constituição estabelece que tanto o IPI quanto o ICMS sejam não cumulativos. Como todo o aparato normativo infraconstitucional deve realizar a Constituição, fazê-la normativa, tanto as leis complementares quanto as leis estaduais instituidoras do imposto devem perseguir esse objetivo ? a não cumulatividade, realizando o cumprimento da disposição constitucional. Por isso, a legislação complementar à Constituição deveria evitar ao máximo estabelecer restrições ao uso dos créditos fiscais decorrentes das aquisições de bens de uso ou consumo, que aumentam os custos de produção, repercutindo, afinal, sobre a renda das famílias. A Dra. Misabel Derzi já afirmou:
"Nós temos que garantir normas segundo as quais o imposto de consumo efetivamente não seja suportado pelo comerciante, pelo industrial ou pelo produtor. Todas as vezes em que isto ocorrer, os agentes econômicos ou industriais se arranjarão de alguma forma no mercado para evitar a incidência. (…) Nós temos que garantir, enfim, que os impostos de consumo existentes em nosso País sejam neutros e, para, isso, deverão ser não cumulativos".
Mas a tristemente famosa Lei Kandir, pelo contrário, mantém indefinida a possibilidade uso integral e imediato dos créditos fiscais sobre materiais de uso ou consumo, prejudicando a competitividade das empresas, a rentabilidade dos negócios, o que termina por ser prejudicial para a saúde da própria base tributável pelo imposto. Em outras palavras, nenhum crédito fiscal poderia deixar de ser imediata e integralmente reconhecido pelo Fisco. E quando se tornar inviável a compensação normal de tais créditos, a legislação do imposto deveria assegurar mecanismos de imediata compensação, ou a pronta restituição dos valores não compensados. Esta política evitaria a formação de passivos tributários em longas e custosas demandas judiciais.
Um terceiro defeito da tributação do consumo no Brasil é que a seletividade, prevista na Constituição, é praticada ao inverso. A Constituição Federal admite que o ICMS pode ser seletivo, desde que o seja em função da essencialidade do bem ou serviço. Vale dizer, se o ente instituidor do imposto adota a seletividade, o fará para cobrar menos imposto dos bens e serviços essenciais à vida e ao desenvolvimento econômico. Assim, se alimentos são essenciais à vida, não poderão ser tributados ou, se o forem, deverão ser adotadas alíquotas mínimas. Caba aqui o ensinamento de Aliomar Baleeiro:
"Seletividade, no art. 48 do CTN, quer dizer discriminação ou sistema de alíquotas diferenciais por espécies de mercadorias. Praticamente, trata-se de dispositivo programático endereçado ao legislador ordinário, recomendando-lhe que estabeleça as alíquotas em razão inversa da imprescindibilidade das mercadorias de consumo generalizado. Quanto mais sejam elas necessárias à alimentação, ao vestuário, à moradia, ao tratamento médico e higiênico das classes mais numerosas, tanto menores devem ser."
Se formos mais adiante e entendermos que certas utilidades ou insumos são essenciais para o desenvolvimento econômico, como a eletricidade e os combustíveis industriais, então tais mercadorias ou utilidades não poderiam ser tributadas senão com alíquotas mínimas. A resultante seria maior competitividade das empresas, menores custos de produção, maior rentabilidade, menor custo de vida e maior consumo, efeitos que só beneficiariam a economia e, por via indireta, maior potencial de arrecadação do imposto.
Muitas críticas injustas têm sido feitas ao ICMS. Podemos permitir ou aceitar que a mídia não especializada diga que o ICMS tem 40 ou 50 alíquotas ou que no País existem centenas de impostos e por aí afora. Mas temos que reconhecer e afirmar que não traduzem a realidade dos fatos. O ICMS tem adotado em regra três alíquotas: uma geral, uma reduzida sobre mercadorias essenciais e uma elevada, sobre bens considerados supérfluos ou não essenciais. É verdade que há distorções aqui e ali, mas o modelo geral é de três alíquotas nominais. É verdade que a as alíquotas efetivas, por força das desonerações são múltiplas, mas isso decorreu, fundamentalmente, pela necessidade de reduzir uma carga tributária que tem se revelado excessiva em diversos setores e de compensar a falta de investimentos federais em infra-estrutura e no financiamento das atividades produtivas.
É verdade, também, que a chamada "guerra fiscal" provoca a perda da neutralidade do imposto. Mas o que foi melhor para a economia? A redução da carga tributária que trouxe maior competição a setores específicos, como o automotivo, que promoveu a desconcentração industrial e a distribuição regional dos parques produtivos, não tem sido benéficos para o País? É a competição fiscal um mal em si mesma? Não será um modo válido de promover o desenvolvimento de regiões mais atrasadas, como na Alemanha reintegrada ou como no Brasil economicamente desequilibrado? Do ponto de vista das empresas, o que é melhor: menos carga tributária ou menos custos administrativos? Mais competitividade ou maior neutralidade do imposto?
De qualquer sorte, sabemos todos que a guerra fiscal entre os Estados somente se propagou e ganhou a força desarmonizadora das relações fiscais entre as unidades federadas que hoje se verifica, pela perda da força normativa do art. 8º da Lei Complementar nº 24/75, que ora o Supremo Tribunal Federal parece pretender recuperar, dique de contenção dos benefícios fiscais concedidos sem autorização do CONFAZ que funcionou bem por 20 anos.
Um aspecto que merece ser referenciado está relacionado com a composição dos preços em contextos econômicos diferenciados. Produzir um bem em uma região tecnologicamente rica e destina-lo a outra região pobre pode exigir preços diferenciados, impostos pelo mercado. Por exemplo, a produção de uvas de mesa no Rio Grande do Sul, para delicatessens em São Paulo ou Rio de Janeiro pode não ser fortemente afetada pelo custo tributário. Mas comercializar a mesma produção para consumo no Norte ou Nordeste, onde a renda familiar é menor e as distâncias são maiores, pode exigir a compressão de custos, dentre eles o tributário. Se não for possível essa compressão, inviabiliza-se o comércio dessa mercadoria ente as regiões Norte/Nordeste e Sul.
Mas é preciso estudar com cuidado os efeitos de uma tributação diferenciada entre regiões pobres e ricas. A experiência de uma alíquota menor na remessa de mercadorias do Sul/Sudeste para o Norte/Nordeste e Centro-Oeste trouxe ganhos para quem? Para as regiões pobres esta política pode ter sido um tiro no pé, na medida em que houve transferência de renda das famílias de uma para outra região. Além disso, a diferenciação de alíquotas nas operações interestaduais tem sido, na experiência brasileira, um forte estímulo à sonegação fiscal, o que recomenda a adoção de alíquotas uniformes em tais operações.
Mas que resultados a uniformização das alíquotas interestaduais trará? Os empresários de São Paulo se sentirão motivados a deslocar suas empresas para o Norte/Nordeste e Centro Oeste onde o mercado é menos atraente? Ou permanecerão próximo do centro consumidor mais rico e desenvolvido? Então qual será o mecanismo de desconcentração industrial? Uma das soluções que pode se apresentar é uma ?guerra fiscal de subsídios? via construção de imóveis industriais, cessão de grandes áreas de terra, assunção de custos de formação de mão de obra ou, simplesmente, retornando ao mecanismo de subsídios creditícios nas operações de financiamento, sem quebra da desejada neutralidade do imposto sobre consumo. O que, certamente, não se pode esperar é que os Estados desistam de promover o desenvolvimento industrial nos respectivos territórios.
Uma razão lógica para a manutenção da tributação na origem está no fato de que o estado de origem conhece e interage em diversos planos com os players do mercado – fábricas, empresas rurais, atacadistas etc., onde se origina a produção e as remessas das mercadorias. Por outro lado, os estados de destino somente tomam conhecimento das entradas de mercadorias no seu território no momento em que acontecem e não conhece os fornecedores, o que dificulta e encarece a fiscalização, especialmente nos Estados com muitas fronteiras. Como controlar várias fronteiras estaduais? Com muitos milhares de agentes fiscais? A que custo? E com que efetividade? É bom lembrar que VI Directiva estabeleceu como objetivo na União Européia a tributação na origem, mas, receosos os governos nacionais, ainda não implementaram esse mecanismo, senão de forma restrita. Em 1992/1993 o grupo que discutia a reforma tributária na Cotepe, do qual fiz parte se perguntava se os Estados confiariam na eficiência do Fisco sob o comando de governadores como o Dr. Leonel Brizola ou o como Dr. Paulo Maluf. Hoje creio que seria de se perguntar porque o Estado da Bahia vai aplicar o melhor dos seus esforços, a um custo elevado, para cobrar com eficiência o imposto devido ao Estado de São Paulo. E vice-versa, se o Estado de São Paulo vai dedicar seus melhores fiscais para reclamar o tributo devido aos demais Estados e se esta será uma atividade marginal do fisco estadual paulista.
A inteligência nacional construiu um imposto repartido entre origem e destino, envolvendo pelo menos dois órgãos de fiscalização estadual com o mesmo objetivo: conter a sonegação. Com a "eletronização" da nota fiscal, o sistema tende a se tornar menos frágil, pois todos os entes interessados terão conhecimento prévio dos roteiros geográficos da circulação e das partes envolvidas em cada negócio. A experiência do sistema europeu (VIES), assim como a implementação do sistema brasileiro de controle (SINTEGRA), fortalecem esta expectativa.
No artigo O que retarda o investimento , o articulista Klaus Kleber referencia o jurista Fernando Zilveti, professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas – São Paulo (FGV-Edesp), que diz, sobre a nacionalização da legislação sobre o ICMS:
"… por si só, este pode ser um fator limitante a uma reforma mais ampla. ‘Parece-me’, diz o Prof. Zilveti, "que a federalização da legislação do ICMS representa, em si, perda de autonomia dos estados. Não obstante, outras jurisdições experimentaram essa concentração de poderes legislativos com sucesso. O que ocorre é que os estados, que no modelo federativo brasileiro têm menos relevância normativa que os municípios, a se efetivar a federalização do ICMS, estariam fadados a legislar apenas sobre nomes de placas de ruas, nomes de praças e outros logradouros públicos. Para convencer os governadores da oportunidade da reforma em questão, seria necessário negociar ganhos mútuos, o que no atual cenário não se vislumbra".
A reforma da tributação do consumo volta e meia aparece como a panacéia para todos os males. Mas vozes autorizadas têm se manifestado contra essa visão mesquinha. Por exemplo, o economista indiano Vinod Thomas, ex-diretor do Banco Mundial (Bird) no Brasil, autor do livro O Brasil Visto por Dentro (2005), diz :
"A atual fase das reformas, direcionada para objetivos básicos, tais como o superávit primário, continua necessária, mas é preciso que seja complementada por uma segunda fase", escreveu. "Esta pode ir além das metas quantitativas e se concentrar na dimensão da qualidade. Além do mais a qualidade dos gastos públicos promove um grande processo de crescimento inclusivo. Também faz parte dessa agenda a promoção da ciência, do conhecimento e da inovação, que trazem uma grande competitividade nos investimentos e comércio globais. Investimento nos nativos naturais é outra prioridade que torna o processo de crescimento mais sustentável e ajuda o país a atingir seu potencial". Thomas considera que as chances de o Brasil crescer 6% a 8%, a médio prazo, são até melhores que as da China, que deve enfrentar um sério problema político interno para se transformar em democracia, e da Índia, que tem 250 milhões de pobres".
A experiência do esforço da Alemanha reunificada, para o desenvolvimento da parte Oriental, demonstra que mesmo em federações ricas, o federalismo de cooperação é insuficiente para atender aos anseios de desenvolvimento das regiões mais pobres. Isso exige certo desprendimento das regiões ricas, para que o mecanismo de competição fiscal traga o equilíbrio na repartição da riqueza.
Políticos, empresários, jornalistas especializados, administradores públicos, todos, invariavelmente, apontam como única saída para o governo brasileiro fazer a economia crescer, mesmo cuidando de manter a estabilidade econômica, de modo a gerar os empregos necessários para absorver os jovens que chegam ao mercado de trabalho e gerar renda. Mas para atrair investimentos é preciso acenar com um cenário em que os custos de produção, e em que os ambientes, político e jurídico, assegurem o direito de propriedade, e o câmbio, os juros e os tributos não comprometam a rentabilidade dos negócios.
Para tanto, várias reformas são necessárias, dentre elas a reforma fiscal/tributária. Efetivamente, mais que uma reforma tributária, o País se ressente de uma reforma fiscal, que estabeleça limites claros para o administrador público, mas que não os aprisione numa quase total mendicância por transferências e os impeça de exercer a necessária autonomia, com responsabilidade fiscal, que permita realizar os gastos e investimentos desejados pela população dos respectivos territórios.
Não podemos esquecer "As sanções organizadas decorrem em grande parte da repartição de poderes, segundo o ensinamento de Montesquieu, tantas vezes repetido, de que o poder detém o poder." Esse ensinamento do professor baiano Manoel Ribeiro se aplica tanto à clássica repartição de poderes dentro de um mesmo ente estatal, quanto à repartição entre os entes políticos com base territorial, vale dizer, entre o governo central e os governos subnacionais. O poder político dos entes federados detém o poder do governo central, impedindo a formação de um estado totalitário, afastado do ideal democrático. É essa uma das justificativas da autonomia dos governos subnacionais. A outra justificativa é que a proximidade que esses governos mantêm com a sociedade permite que a sociedade influa sobre o poder estatal, o orientando na satisfação das necessidades coletivas, razão de ser do Estado.
A autonomia política dos governos subnacionais inexiste se não estiver suportada na autonomia financeira, na competência para instituir tributos capazes de sustentar a atuação estatal. Ao governo central cabe a suplementação das receitas públicas dos governos, segundo critérios universais, claros e de todos conhecidos. A concentração de poder político na mão de um único governo favorece a manipulação política das províncias, impedindo ou dificultando que o poder detenha a si próprio.
Novamente roubando o pensamento libertário de Manoel Ribeiro, transcrevo-lhe as palavras, escritas por volta de 1953:
"Somente numa época suicida pode-se falar contra a separação de poderes. Pugnar pelo seu fim é irresponsabilidade. É, sobretudo, ignorar as lições do passado e da história contemporânea.
(…)
Todos os tiranos começaram, a nossos olhos, por absorver as funções todas, estatais, confundindo-as em suas mãos. É o passo decisivo para a morte da liberdade".
Por isso que a reforma fiscal não pode manietar os estados e municípios no exercício de suas responsabilidades constitucionais e a reforma tributária deve prover todos os entes federados da necessária autonomia financeira. Disso decorrerá a autonomia política dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
O Brasil se encontra em uma encruzilhada: ou cresce ou falece. Sendo a alternativa – falecer – inaceitável, face aos princípios insculpidos na Constituição, expressão primeira da vontade popular, a matriz tributária brasileira deverá ser ajustada para promover o crescimento econômico, o desenvolvimento social, com a impostergável inclusão dos desassistidos.
Para tanto o ajuste das matrizes fiscal e tributária brasileiras deverá privilegiar o trabalho, a formação de mão de obra, o investimento em infra-estrutura e o investimento privado de modo a facilitar e a promover as relações econômicas que propiciem a inclusão do indivíduo no meio social e o País no seio da comunidade de nações desenvolvidas.
Mas, evidentemente, não se pode falar em reforma tributária se os esforços estiverem direcionados para a simples supressão da autonomia dos entes federados, um complemento à Lei de Responsabilidade Fiscal. É verdade que a disciplina que não manieta, favorece o cumprimento, pelos entes federados, dos encargos fixados na Constituição Federal. Mas a supressão da autonomia desobedece ao espírito da Carta Magna brasileira e deve ser combatida.
A construção de uma nova discriminação constitucional das rendas e a definição das competências das unidades da federação passa, necessariamente por uma melhor definição dos encargos de cada ente e dos objetivos de crescimento econômico e desenvolvimento social para o País como um todo e para as regiões em que se subdivide o território nacional. É preciso também definir um norte para as reformas fiscal e tributária. Esse foi o exemplo da Alemanha, que tem como objetivo maior buscar a equalização da dignidade de todos os alemães.
No Brasil, esse norte para as reformas fiscal e tributária pode ser colhido no Art. 3º da Constituição Federal que fixa os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, especialmente nos incisos II e III: garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
O atendimento das necessidades dos empreendedores rurais, dos pólos industriais dos estados, dos pólos e empreendimentos comerciais são melhor atendidos pelos governos estaduais do que pelo governo federal. Já o atendimento dos atores no comércio exterior e o atendimento da formação de fundos de seguridade são mais bem atendidos pelo governo federal, com o apoio dos demais entes federados. Por isso o Sistema Tributário Nacional deve buscar a especialização dos entes tributantes em função de suas respectivas competências políticas e administrativas. Assim, deve caber à União a tributação do comércio exterior, da renda, e as contribuições sociais para a manutenção da seguridade social. Aos Estados e ao Distrito Federal deve caber a tributação dos bens e serviços de maior abrangência. Aos Municípios deve caber a tributação dos serviços tipicamente municipais.
A tributação sobre o valor agregado é naturalmente complexa em qualquer país e por isso carece de harmonização, como já acontece a décadas no Brasil e também na Comunidade Econômica Européia. A busca da compensação pela falta de uma política nacional de fomento às atividades empresariais levou a um sem número de alíquotas efetivas e à perda de neutralidade do imposto. Por isso a reforma da matriz tributária brasileira não se fará sem que se aborde, entre outras, questões relativas à tributação do consumo, tais como:
1. neutralidade tributária face à competitividade entre os atores industriais e comerciais;
2. mitigação da competição fiscal entre os entes federados, para níveis suficientes para a redução das disparidades regionais;
3. estabelecimento de uma legislação menos extensa e complexa;
4. manutenção da articulação entre os estados, para fins de harmonização dos seus interesses fiscais;
5. decisão quanto à manutenção da competência tributária que garanta a autonomia financeira dos entes federados;
6. adoção de sistemática de tributação de ICMS nas operações interestaduais que desestimule a sonegação fiscal;
7. respeito aos princípios da não cumulatividade e da seletividade;
8. contenção da sobreposição e multiplicidade de tributos com saturação das bases tributárias;
9. mecanismos de fomento às exportações;
10. tributação adequada das micros e pequenas empresas para a promoção do trabalho, da distribuição de renda e da inserção social dos excluídos.
No enfrentamento dessas questões, parece evidente que o País deve buscar a redução da arrecadação dos Estados sobre a tributação dos bens e serviços essenciais à vida e à promoção dos empregos mais simples, via desoneração das microempresas que potencialize a geração de emprego e renda e a capacidade de compra das famílias. Ao governo central caberá complementar os recursos dos entes tributantes das regiões mais pobres, cujo nível de atividade econômica não seja suficiente para gerar com esforço fiscal regional, os recursos necessários ao financiamento do Estado. Por isso é prudente que se faça a revisão dos fundos constitucionais e a adoção de novas estratégias de política de desenvolvimento regional para melhor solucionar os conflitos de interesses. Uma solução simples seria estender-se às contribuições federais a regra impositiva de repartição com os Estados e Municípios, o que restabeleceria o equilíbrio na repartição de renda tributária nacional.
O atual sistema de tributação de bens e serviços entra em nova fase com a adoção da "nota fiscal eletrônica", com o uso adequado do Sistema SINTEGRA e com o cada vez maior fluxo de informações dos mercados financeiro e de crédito. A partilha de bases tributáveis prejudica a eficiência do sistema tributário nacional, pois o torna complexo e oneroso para o Estado e para o contribuinte. O que é fundamental é a partilha automática de informações por meio eletrônico por todos os entes tributantes e um aparato normativo mais efetivo para o combate ao crime contra a ordem tributária. A atual adoção de cadastros únicos atende a um só tempo aos interesses do estado e do contribuinte, além de proteger o bom contribuinte da concorrência criminosa dos sonegadores. A possibilidade de instituição de mecanismos conjuntos de controle já é admitida no CTN há mais de 40 anos (art. 7º). Basta usar o aparato normativo já existente.
A sobreposição de poderes tributários (da União e dos Estados) sobre bases tributárias comuns aumenta a competição em torno da exploração dessas bases, gera conflitos de competência e amplia a complexidade do sistema tributário, com prejuízos para a competitividade da economia brasileira. Por isso, melhor será especializar os entes tributantes, cabendo aos entes melhor capacitados para o controle das centenas de milhares de contribuintes num país de dimensões continentais a tributação do consumo e a outro a tributação das bases que tenham maior proximidade com suas responsabilidades constitucionais (comércio exterior, mercado financeiro etc.).
A manutenção da competência tributária dos entes federados é fator de democratização do exercício do poder político, pois a identificação entre governantes e governados é tão maior quanto mais próximo estejam uns dos outros, o que favorece o controle da sociedade sobre os governantes. Por isso, a manutenção, pelos Estados, do poder de tributar serve aos princípios democrático e federativo.
Ao promulgar a Constituição Federal de 1988, o Poder Constituinte preservou a repartição dos impostos federais com os Estados e Municípios e dos Estados com seus municípios, tendo em consideração a repartição de competência então existente e as bases então tributadas. A instituição e a exacerbação das contribuições federais, portanto, retrata uma distorção não prevista pelo Poder Constituinte, qual seja o de fragilizar o equilíbrio federativo pela via da concentração de rendas na união em detrimento dos Estados.
A constitucionalização de certas matérias dá rigidez ao sistema, mas dá maior segurança aos entes políticos mais frágeis ou menos articulados em nível nacional, como os Estados e Municípios mais fracos. Por isso, melhor será definir critérios de ajuste automático da repartição de receitas via fundos constitucionais para evitar a necessidade de ajustes constantes no texto constitucional, que precisa ser o mais estável possível.
A vinculação das transferências de recursos do Governo Federal para governos subnacionais, como no caso do SUS e do FUNDEF, orientada para a formulação de políticas nacionais uniformes e equalizadoras para serviços públicos não considera que a diversidade regional e dos níveis de desenvolvimento humano exige soluções regionais diferenciadas. A manutenção de certo grau de vinculação de recursos para a manutenção de políticas nacionais uniformes pode conviver um maior grau de autonomia da gestão pelos entes federados para evitar distorções como as que se tem verificado no caso dos atuais fundos vinculados até o ponto em que não se restrinja os efeitos desejados com a vinculação. Ou seja, a vinculação somente deve existir para atingir os padrões desejáveis das políticas governamentais de saúde, educação etc.
A definição de contrapartidas dos governos sub-nacionais aos aportes de recursos federais pode e deve envolver os entes federados nas definições de políticas nacionais de educação, saúde, etc., tendo em vista os diferentes níveis de necessidade. Mas o aporte de recursos pelos governos subnacionais deve estar compatível com a capacidade de cada ente federado, ou seja, os entes mais ricos podem aportar maior grau de recursos que os entes federados mais frágeis. Assim pode ser uma forma adequada de repartição da riqueza.
É oportuno que o novo modelo de federalismo fiscal disponha de mecanismos para reduzir, restringir a competição fiscal entre os estados, embora do ponto de vista econômico seja praticamente impossível e até indesejável a acomodação dos estados menos desenvolvidos em relação às necessidades de desenvolvimento econômico dos entes federativos.
A competição, instrumento que se tornou necessário para fazer frente à falta de investimentos federais nos estados menos desenvolvidos é, no limite, autofágica, irracional e precisa ser contida, pois fragiliza a harmonia entre os entes federados. Mas o fomento das atividades rurais, industriais e comerciais deve ser uma das formas de desenvolvimento da economia. Por isso, o atendimento a grupos de interesses acontece no mundo inteiro, em geral pela via dos subsídios orçamentários, tendo em vista, o interesse público e a segurança nacional. Por exemplo, no caso da navegação aérea, da infra-estrutura portuária, da indústria bélica, da energia nuclear etc. O que não deve acontecer com prejuízo da neutralidade dos impostos.
Essa competição entre os entes federados para a atração de investimentos e fomento de setores da economia levou à indesejável desuniformidade na tributação dos bens e serviços, o que deve ser corrigido para dar maiores eficiência e produtividade ao sistema, reduzir os custos de gestão tributária e dos custos administrativos das empresas, assim como favorecer o controle social (accountability). Mas não deve ser vista como um mal em si mesma. Mesmo nos países mais desenvolvidos, a competição entre províncias existe. O que deve ser evitado é a distorção do sistema tributário. Por isso a reforma fiscal deverá apontar mecanismos aceitáveis de competição e que não comprometam a capacidade de investimento dos Estados.
É perfeitamente possível reduzir a competição fiscal a um nível aceitável entre os Estados se for criado mecanismo de promoção ao desenvolvimento regional. Além disso, muitos dos conflitos entre os estados podem ser resolvidos em grande parte pelas estruturas ministeriais e pelo Congresso nacional, em especial pelo Senado Federal. O Confaz e sua Comissão Técnica Permanente já têm a experiência necessária para harmonizar os conflitos tributários de modo que não afetem a estrutura e a neutralidade tributária.
O fomento de atividades empresariais não propicia a corrupção no setor público quando se preserva a transparência na concessão dos incentivos, seja pela via do tributo, seja pelo aporte de subsídios orçamentários. A contenção da corrupção deve se dar pela prática dos princípios de accountability e pela aplicação efetiva da legislação criminal.
A competitividade das empresas tem sido diminuída pela tributação dos bens de capital. Por isso a matriz tributária deve obedecer ao comando constitucional de não cumulatividade, sem quaisquer restrições, permitindo o imediato e integra uso dos créditos fiscais que importem na desoneração do capital produtivo aplicado a máquinas e equipamentos dedicados à produção de bens e serviços. Quanto à seletividade, cabe verificar que o comando constitucional pretendeu que a seleção identificasse os bens supérfluos ou danosos ao ambiente, para tributá-los mais fortemente (armas e munições, cigarros e bebidas etc.) ou, em função da sua essencialidade, para tributá-los menos (energia elétrica industrial, fertilizantes, remédios etc.).
A inserção do País no mercado globalizado impõe a imunidade da tributação do consumo nas saídas para o exterior. Mas sem compensação adequada a imunidade tornou desestimulante o esforço de exportação dos Estados. O mecanismo de repartição de receitas federais pode ser o instrumento adequado para que os estados sejam aliados no esforço exportador do país, desde que seja automático como é a repartição do ICMS dos Estados com seus municípios, nos termos da Lei Complementar n° 63/90. É necessária a criação de mecanismo que estimule políticas de fomento à exportação por parte dos estados, com a participação efetiva do governo federal, maior beneficiário na obtenção de divisas. Atendidos estes dois pressupostos, no contexto de um novo modelo de federalismo fiscal, os estados poderão renunciar à sistemática vigente de compensação de perdas. Na hipótese de instituição de um mecanismo adequado de fomento às exportações seria possível extinguir a quota-parte dos Estados correspondente ao Fundo IPI Exportação, especialmente partindo do pressuposto que o IPI será integrado ao novo IVA.
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Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia
Especialista em Direito Tributário
Salvador – BA, nov/2006
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