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Pai e Professor

Pai e Professor

Ângelo Pitombo*

Neste dia dos pais, aproveito para fazer uma singela homenagem ao meu pai Arlindo Pitombo, extensiva a todos os pais, que, na maior parte das vezes, envolvidos com seus afazeres, escondem todo o seu amor e dedicação para consolidar uma educação que garanta uma vida mais confortável aos filhos na idade adulta, postura nem sempre compreendida.

Filho de Dona Julieta da Silva Pitombo e Joaquim Inácio Pitombo, irmão de Waldir, Dival, Diva e Dete, todos, independentemente de outras profissões, educadores por vocação que dedicaram com muito prazer grande parte de suas vidas a arte de ensinar.

O Professor Arlindo gostava mesmo era de dar aulas de História Geral e, através de seus estudos, apaixonou-se pela pintura, filosofia e música clássica. Ainda lembro os seus preferidos: Beethoven, com a ?Sonata ao Luar? e a ?Nona Sinfonia?; Sócrates, através dos conhecidos diálogos de Platão e Michelangelo Buonarroti com sua obra ?Juízo Final?, imortalizada no interior da Capela Sistina, a qual teve a oportunidade de conhecer presenciando com todos os detalhes tudo que já conhecia e imaginava da obra.

Hoje consigo perceber a influência de alguns deles em sua vida – da música clássica, obteve o estímulo para aprender piano e cravo (este último, certamente, pelo fascínio que tinha por Bach e sua obra ?O cravo temperado?); da filosofia, especialmente Sócrates, a quem admirava por ter introduzido na Grécia um sentido refletivo e de crítica, aprendeu que ?o homem mau o é por ignorância; aquele que não segue o bem é porque não o conhece?. Entendia que o bem precisa ser conhecido e experimentado para que se perceba a imensa vantagem em segui-lo. Os educadores têm um papel de liderança neste processo e este papel não passou despercebido ao Professor Arlindo que dirigia suas aulas e sua vida alinhadas nesta inteligência.

O gosto por ?Cândido?, a obra mais famosa de Voltaire, e a constatação do sofrimento deste personagem ante a educação alienante de seu Professor e Filósofo, Doutor Pangloss, que pregava uma visão ideal do mundo, deve tê-lo mobilizado a aproveitar a História para seus alunos perceberem que parte do passado se repete no presente, favorecendo a uma avaliação mais independente do momento vivido e que parte do presente refletir-se-á no futuro contribuindo para projeção de novos rumos.

Professor Arlindo ensinava História estimulando o seu estudo com a busca de detalhes e casos pouco conhecidos que eram colhidos através de pesquisas feitas em sua biblioteca particular (posteriormente doada a Universidade Estadual de Feira de Santana) a qual, inclusive, contemplava 15 jornais publicados em Feira de Santana entre o período 20/03/1876 a 13/09/1903. Estas pesquisas eram muitas vezes realizadas em companhia de seu irmão Dival Pitombo, professor de História e Odontólogo.

Por outro lado, o Professor Arlindo Pitombo além de dedicar sua vida à comunidade servindo como Instrutor na 2ª Guerra Mundial, Educador, Poeta, Secretário de Turismo do Município e Diretor de Empresas, tinha a graça de ser um bom pai considerando a família como núcleo de equilíbrio social – era um homem dedicado aos filhos e obstinado em relação a nossa formação, tanto intelectual quanto moral. Esse era o seu lado menos conhecido, mas talvez o mais belo e importante.

Ao procurar defini-lo, com apenas uma só imagem, relembro uma das muitas noites que passávamos em nossa chácara perto do Distrito de Humildes, na casinha feita com seus parcos recursos; no piso, um acabamento de cimento cru, apenas para possibilitar seu uso. Olhando de frente percebia-se nitidamente que faltava a parte esquerda a ser construída: tinha duas janelas e duas portas além de móveis antigos não mais utilizados em nossa casa da cidade.

Era uma daquelas noites frias de São João. Os ventos que precediam a chuva eram inusitadamente fortes. Estávamos todos nos, os cinco filhos e minha mãe, sentados no aconchego da sala e da coberta e meu pai tocando violão e cantando sua música preferida para estas ocasiões. Chamava-se ?Mané Fogueteiro?, de autor por mim desconhecido e pelo que me lembro com a ajuda da memória de meus irmãos Jener e Mariângela, era mais ou menos assim:

?Mané fogueteiro era o rei das crianças,
na vila distante dos Três Corações,
em tempo de festa jogava rodinhas,
tocava foguetes, soltava balões!

Mané Fogueteiro gostava da Rosa,
cabocla mais linda no mundo não tem,
porém o pior é que o José Boticário,
gostava um bocado da Rosa também.

Um dia encontraram Mané Fogueteiro
de olhos vidrados de bruços ao chão,
um tiro certeiro varara-lhe o peito
na volta da festa de Juca Romão.

Mas como todos que morrem de tiro conservam
a última cena nos olhos sem luz,
um claro foguete de lágrimas tristes
alguém viu brilhando em seus olhos azuis?.

Durante a canção, os relâmpagos com chuva e ventos se intensificaram de tal forma que tive o receio e o desejo infantil de que Deus estivesse também inconformado com a injusta morte de Mané Fogueteiro.

As folhas de zinco que cobriam a casa ameaçavam soltar e o barulho das telhas batendo umas nas outras era amedrontador; meu pai tentava pelo lado de dentro tomar providências que não surtiam efeito e logo decidiu sair para impedir o destelhamento. Pegou a escada, a colocou do lado de fora e ordenou que fôssemos aos quartos. Saiu e fechou a porta da casa. Os ventos, os raios e os trovões eram tão fortes que pareciam estar dentro de casa. Diligente, minha mãe escondeu todos os espelhos e voltou para o quarto. Passaram-se alguns minutos, talvez meia hora e meu pai não voltava. Resolvi, na condição de filho mais velho, espantando todos os medos e descumprindo a orientação dele, sair para o lado da casa e tomar pé da situação.

Afastei-me um pouco da casa e apesar dos protestos de Dona Zelinha, preocupada comigo na chuva, pude ver neste momento a imagem que me permite hoje definir meu pai: ele estava deitado com o peito sobre as telhas de zinco e os braços abertos, já cansado e totalmente molhado, sendo empurrado para cima pelas telhas que eram impulsionadas pelos fortes ventos e, com seu peso, recolocava-as suavemente em seus lugares. Estava, pacientemente, esperando o fim daquela tempestade e evitando que fôssemos atingidos pelo destelhamento e pela chuva que pouco a pouco, suavemente, foi-se acalmando naquela inesquecível noite.

Um dia encontraram Mané Fogueteiro
de olhos vidrados de tanta emoção,
a Rosa que amava um beijo lhe dera,
na volta da festa de Juca Romão.

Mas como todos os amantes merecem
a felicidade eterna lembrada em canções,
ninguém mais viu Mané Fogueteiro sem a Rosa,
na Vila distante dos Dois Corações.

Modifiquei a estória de Mané Fogueteiro para ter um final feliz, assim como deveriam terminar todas as histórias dos dedicados pais, homens simples, produtivos, honrados, preocupados com o saber e por todos queridos como foi a do Professor Arlindo Pitombo, que nunca se separou de sua amada terra Feira de Santana.Viveu lá até o seu falecimento, acompanhando passo a passo o seu crescimento, vibrando com o seu progresso e contribuindo para o seu aperfeiçoamento cultural, onde plantou todos os seus sonhos, soprou o seu perfume e, junto com os irmãos, viu florescer a esperança que aquela Fazenda com sua Capelinha, de ponto de encontro dos tropeiros do alto sertão, se transformasse em um grande ponto de encontro cultural onde sempre esteve reservado um altar especial para o saber.

Caso Bérgson tenha mesmo razão e o tempo decorrido dependa apenas da nossa consciência individual, essas lembranças se perpetuarão jovens, trazendo sempre boas e paternas emoções.

*Auditor Fiscal. E-mail:

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