O porquê do sucesso da Arrecadação de ICMS do Rio de Janeiro
Colocar pessoas certas nos lugares corretos. Isto é o que mostra a reportagem da Veja Rio, na edição de 30/12/2006.
REPORTAGEM DE CAPA
O secretário estratégico
Por Sofia Cerqueira
Uma megaoperação movimentou os bastidores do alto escalão da política nacional há pouco mais de um mês. Envolveu o presidente Lula, os ex-ministros da Fazenda Pedro Malan e Antônio Palocci, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, e o governador de Minas, Aécio Neves. Todos, depois de contatos com o governador eleito do Rio, Sérgio Cabral, fizeram duas ligações para Washington, nos Estados Unidos. Uma para o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Luiz Alberto Moreno, num esforço de convencê-lo a liberar um de seus mais importantes colaboradores. E a outra para o economista Joaquim Vieira Ferreira Levy, 45 anos, o 'funcionário em questão', no intuito de persuadi-lo a deixar um cargo de projeção internacional - a vice-presidência do BID -, abandonar a vida confortável em um subúrbio da capital americana e assumir as finanças de um estado endividado e corroído economicamente. Funcionou. Tanta mobilização já dá pistas do seu prestígio e da expectativa depositada no homem que, a partir da próxima segunda (1º), com a posse do novo governo, terá a chave do cofre do estado.
Carioca, longe da cidade desde 1987, o novo secretário estadual da Fazenda desembarca no Rio com apenas algumas malas de roupas ? a família só virá em setembro. Mas promete arrumar a casa e fazer uma grande mudança na economia do estado. 'Vim convencido da seriedade, do compromisso do novo governo com transformações profundas e porque acredito no Rio', diz Levy. 'A experiência no governo federal mostrou que mesmo em situações altamente voláteis é possível mudar. Não tem por que não dar certo aqui', completa ele, que foi secretário do Tesouro Nacional entre 2003 e março deste ano. Carrega ainda a bagagem de ter trabalhado por sete anos no Fundo Monetário Internacional (FMI). Conhecido pela austeridade e pelo rigor com que conduz as contas públicas, Levy deverá adotar mãos-de-ferro também nas finanças estaduais. 'Ele é o grande timoneiro da futura gestão. É o secretário estratégico', define Sérgio Cabral.
Longe dos números, o economista é um apaixonado por meio ambiente e planeja escrever um guia sobre o Aterro do Flamengo, adora ver filmes infantis com as filhas, lê de tudo, até almanaque de efemérides, espera ver um jogo do seu Botafogo no Maracanã e sonha singrar de barco pela Baía de Guanabara ? de preferência, com o programa de despoluição, uma de suas bandeiras, a todo o vapor. Mas avisa: 'Não vim ao Rio a passeio'. Trabalho não faltará. Levy recebe o cofre do estado com um rombo de 914 milhões de reais, resultado de uma antecipação de royalties com o governo federal. Ao valor somam-se 2 bilhões de reais de 'restos a pagar' (despesas anteriores). No total, a dívida com a União é de cerca de 40 bilhões de reais. Mesmo diante do descontrole financeiro e do fantasma de problemas no caixa - o governador já manifestou o temor de ter dificuldade para cobrir a folha de pagamento -, ele prevê um crescimento de 5%. Para isso, planeja uma série de medidas: enxugar gastos, dar transparência à execução do orçamento (35,5 bilhões de reais, em 2007), focar prioridades, modernizar o sistema de ICMS com a adoção da nota fiscal eletrônica e aumentar a arrecadação, mantendo a carga tributária estável. 'É essencial mudar a maneira desorganizada e, em alguns casos, quase desleixada com que o setor público funciona', diz. Executar o orçamento dentro da previsão de receita é uma premissa. 'As despesas não podem ir sendo criadas e depois se correr atrás indiscriminadamente. Isso mata o contribuinte, o empresário'. Quem conhece Levy, um dos economistas mais tarimbados em finanças e gestão fiscal do país, não duvida de sua rigidez para tocar as contas do estado com o segundo PIB do Brasil - 274,7 bilhões de reais (2005), só perdendo para São Paulo. À frente do Tesouro Nacional, foi responsável pela recomposição da dívida pública, que ficou mais sólida e menos vulnerável externamente. Também comandou o aperto nos gastos públicos e executou o ajuste fiscal, que é tido como um dos grandes acertos da política econômica do primeiro governo de Lula. 'Levy é um técnico de excelente qualidade. No Ministério da Fazenda e no Banco Central, Lula teve o bom senso de manter gente como ele. Isso assegurou certa continuidade na gestão da política econômica', comenta o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
O anúncio de Levy para arrumar as contas do estado veio acompanhado de um sopro de otimismo. 'Como carioca e economista, foi a melhor notícia que tive em anos. Ele está no rol dos burocratas de alto calibre que a gente pode contar nos dedos de uma mão no Brasil', diz Edward Amadeo, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no governo FHC. 'O Levy se dedica integralmente àquilo em que acredita e não cede a pressões. Tem jogo de cintura, mas com fortes convicções na racionalidade econômica', reforça Luiz Guilherme Schymura, diretor do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. Em outras palavras: 'É tranqüilo, afável, mas sabe dizer não como ninguém', completa Sérgio Cabral. As reverências à capacidade de Levy são proporcionais a sua fama de workaholic. O economista teve seu primeiro cargo no governo federal em 2000, quando foi adjunto de Amadeo na Secretaria de Política Econômica. 'É um trabalhador incansável. Várias vezes saía do gabinete às 21 horas e ele continuava', conta Amadeo. Na época, quando foi economista-chefe do Ministério do Planejamento, ainda no governo FHC, e à frente do Tesouro Nacional, no primeiro mandato de Lula, corria a história em Brasília de que Levy volta e meia dormia no sofá do gabinete. Também se comenta que ele tem por hábito responder a e-mails de madrugada. O economista não confirma nem desmente. 'Preciso de seis horas de sono por noite. Mas tenho uma facilidade enorme de dormir em qualquer lugar', diz. Seu último chefe, o presidente do BID, Luiz Alberto Moreno, comprova sua disposição para a labuta. 'Para ele, não tem horário. É capaz de realizar vários trabalhos de uma vez, todos com a mesma responsabilidade e sentido de compromisso', comenta. Para relaxar, Levy costuma abrir um livro. No momento, lê 1491, de Charles C. Mann, um estudo inovador sobre a ocupação das Américas, e relê a biografia da escritora americana Gertrude Stein. 'Leio até publicação de efemérides brasileiras. Tenho uma edição antiga, é divertido'.
'Habemus secretário de Fazenda!' A exclamação feita por Sérgio Cabral para anunciar a vinda de Levy, com o bordão usado pelo Vaticano, não demonstra só seu prestígio. Revela que as negociações, concluídas em 28 de novembro, foram árduas. Sabe-se que Levy é movido por desafios. Estava em jogo, porém, abrir mão de um cargo de visibilidade internacional - com uma remuneração condizente ? e, em especial, de sua estrutura familiar. Depois de seis anos em Brasília, Levy estava no BID, em Washington, havia apenas sete meses. 'Estava fazendo obras em casa e esperava ficar ali cinco anos', conta. O economista, a mulher, a advogada Denise, que trabalha numa ONG de defesa do meio ambiente, e as duas filhas - Paulina, 11 anos, e Gisela, 8 - moram em um bairro residencial da capital americana. Têm por hábito andar de bicicleta à beira de um pacato canal. Por causa do ano letivo americano, a mulher e as filhas só se mudam para o Rio em setembro. Nesses meses, Levy buscará abrigo na casa da mãe, no Flamengo, bairro onde nasceu e foi criado. Ele tem quatro irmãos, seu pai era médico e sua mãe, professora de inglês. O economista estudou em dois colégios particulares, um em Laranjeiras e outro na Tijuca, e em uma escola pública de Copacabana. 'A experiência foi interessante, conheço bem a cidade.' Apaixonado por barcos - chegou a remar e a ter um laser na adolescência -, formou-se em engenharia naval na UFRJ. Detalhe: passou entre os dez primeiros no vestibular. Trabalhou na companhia de navegação Flumar. Nessa época, decidiu fazer mestrado em economia na FGV. 'Como aluno, já exibia as qualidades de hoje: inteligentíssimo, trabalhador, hábil e determinado', descreve Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, que foi seu professor. Mais um detalhe: fez o mestrado da FGV, que normalmente dura trinta meses, em um ano e meio. Depois engrenou o doutorado na Universidade de Chicago, berço dos economistas que têm a austeridade fiscal como lema. Não por acaso, é um defensor da Lei de Responsabilidade Fiscal, um limitador de gastos e endividamentos. Quando ocupava o cargo de secretário do Tesouro, chegou a bloquear a transferência de recursos para a prefeitura petista de Marta Suplicy e para o governo fluminense de Rosinha Garotinho. Em ambos os casos, por problemas na prestação de contas para a União.
Se Levy tem ótimo trânsito no governo federal, também circula com desenvoltura por organismos internacionais. Durante sete anos, entre 1992 e 1999, trabalhou no Fundo Monetário Internacional (FMI), em Washington, nos departamentos do hemisfério ocidental e da Europa. Por cerca de um ano, ainda foi do Banco Central Europeu e morou em Frankfurt, na Alemanha. Tanto no exterior como no governo federal, chegava a fazer mais de vinte viagens internacionais por ano. Levy gosta de ver filmes infantis com as filhas. Os longas adultos, ele costuma assistir a bordo. 'Para dizer a verdade, vejo a maior parte dos filmes no avião.' Em cada país que visita costuma comprar miniaturas de barcos e livros sobre botânica. No último dia 13, cruzou novamente o Oceano Atlântico. Veio ao Rio para compromissos do BID e teve reuniões com membros do novo governo. Sol Garçon, ex-secretária de Fazenda do município e consultora fiscal, e Renato Villela, que foi secretário adjunto do Tesouro Nacional, trabalhou no FMI e era diretor adjunto do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), já foram convocados para integrar o núcleo de administração de despesa da sua pasta. Integração é palavra-chave. Entre as dezenove secretarias - no governo anterior eram 27 -, ele destaca a importância de estar afinado com a equipe de Planejamento e Gestão. A execução orçamentária não poderá ser descolada da programação financeira. 'Os próximos quatro anos serão duros, o estado vai ter de gastar menos, diminuir o endividamento e reduzir a carga tributária em cima da sociedade', enumera Sérgio Rui Barbosa, à frente do Planejamento. O desafio é grande: um estudo recente do Tribunal de Contas da União e da FGV revelou o caos financeiro e administrativo do estado. Embora ainda esteja tomando pé da situação, Levy, que tem carta-branca do governador, dará atenção especial a alguns assuntos. Um deles é o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, que se arrasta por quinze anos. 'Sua recuperação é fundamental, faz parte da auto-estima do Rio. Experiências nos rios Tâmisa (Londres) e no Hudson (Nova York) já mostraram que é viável', enfatiza. O projeto do Arco Viário do Rio, que interligará o Porto de Sepetiba às principais rodovias federais que cortam o estado, é outra bandeira. 'Vai reduzir drasticamente o custo de logística e desatravancar rodovias.'
Austero nas finanças, Levy é considerado bem-humorado no trato. O rosto tem uma expressão marcante. 'Um sorriso enigmático. Ele ri quando acha engraçado e também quando está nervoso', diz o amigo Guilherme Shymura. Por causa da peculiaridade, já passou por embaraços. No fim de 2005, durante um depoimento de Palocci na Câmara dos Deputados, provocou a fúria do líder do PFL na casa, Rodrigo Maia. 'O senhor está achando graça no que eu estou dizendo, doutor Levy?', questionou o deputado. 'Já nos encontramos inúmeras vezes depois disso, não há nenhum problema', põe um ponto final na história o economista. Longe dos holofotes da política, Levy adora falar de plantas e meio ambiente. Planeja, inclusive, fazer um guia com a localização e a identificação das mais de 11.000 árvores do Aterro do Flamengo. Economia é seu ofício e um hábito. Certa vez, quando trabalhava no governo federal, chegou a pagar do próprio bolso uma passagem aérea e depois pedir reembolso porque tinha achado uma promoção em outra companhia. Nas finanças domésticas, é mais complacente. 'Gosto de coisas que sejam bonitas e que a gente aproveite. Dinheiro existe para ser usado, com prioridades e cumprindo obrigações', receita. De volta ao Rio - sua presença foi confirmada na posse -, ele cogita comprar um barco. Mas seus esforços estão concentrados em fazer as finanças do Rio retomar o prumo e a maré econômica virar.
O CURRÍCULO DO SECRETÁRIO
- Workaholic, Joaquim Levy, nomeado secretário da Fazenda do novo governo fluminense, acumulou vasta experiência trabalhando tanto para o governo federal como para instituições internacionais
- Mestrado em economia na Fundação Getulio Vargas (1987).
- Doutorado na Universidade de Chicago (1992).
- Trabalhou sete anos no Fundo Monetário Internacional (FMI), em Washington, nos departamentos do hemisfério ocidental, europeu e nas divisões de mercado de capitais e da União Européia.
- Durante um ano integrou a equipe do banco central europeu, em Frankfurt, na Alemanha.
- Em 2000 foi nomeado secretário adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda, no governo Fernando Henrique Cardoso. No ano seguinte, assumiu o cargo de economista-chefe do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
- Em 2003, início do primeiro governo Lula, foi designado secretário do Tesouro Nacional.
- Em abril de 2006 deixou o Tesouro Nacional e assumiu, em Washington, a vice-presidência de Administração e Finanças do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
- Em novembro de 2006 aceitou o convite para ser o novo secretário estadual de Fazenda.
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