Impactos da Reforma Tributária para o brasileiro. O “coisa” passeia nos subterrâneos da norma – Última parte
Vladimir Miranda Morgado
Introdução.
O presente texto é produzido logo no fim do recesso parlamentar, quando o projeto de reforma tributária tramita debaixo da articulação política no Senado.
A semana de 03 a 07/7/2023 começou com o anúncio de que a reforma estava madura. Com os dias correndo, alguns governadores, prefeitos, parlamentares de oposição e grupos econômicos fizeram movimentos no sentido de impedir a aprovação da PEC 45/2019. Aproveitando a metáfora com a fruta, a reforma corria perigo iminente de pecar, como se diz aqui no norte, ou seja, antes de ser colhida, apodrecer e cair. Todavia, uma contra-ofensiva surgiu forte e a fruta, doente, acabou vingando.
Seguindo a linha da sinonímia traçada nas partes 1 e 2 anteriores, “Coisa”, no Centro-Oeste, significa lúcifer, belzebu.
E assim, nas três partes do presente estudo, contemplamos três expressões usadas nas regiões mais pobres do país para lembrar que o mal pode assumir diversas formas, diversas peles.
Em tempos de bastidores, época em que os debates e acertos seguem no anonimato, é preciso atenção redobrada da sociedade brasileira para evitar que o projeto de reforma tributária não se transforme num caleidoscópio de lobbies de poderosos grupos empresariais e de (algumas) autoridades cooptadas, além do risco de – e isto é o principal – sofrermos intensamente as suas consequências financeiras.
Isto vem para advertir à população brasileira que, se não nos movimentarmos inteligentemente junto aos legisladores infraconstitucionais, senadores, deputados federais e estaduais, além dos vereadores, a reforma poderá sair boa para alguns, mas ruim para a maioria da população brasileira.
Induvidosamente, o país carecia de uma mudança tributária de peso. Máxime no que toca ao consumo, se o projeto não avançasse, perderíamos uma grande chance de fazer uma reforma moderna, ainda nos padrões europeus, é verdade, mas com modelo de taxação sobre o consumo adotado por centenas de nações.
A reforma está demorando de sair porque a Federação brasileira é sui generis. Os municípios figurando como entes federativos, a tributação sobre consumo compartida entre as três esferas de governo, estados e municípios ricos não querendo ceder para estados e municípios pobres, agentes econômicos resistentes a mudanças e à abdicação de privilégios.
A parte final desse trabalho está dedicada ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartida entre Estados e Municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, irmãos siameses unidos pela estrutura anômala federativa que somos, mas que ao nascerem logo se desprenderão, percorrendo caminhos diferentes.
- Aspectos técnicos para contextualização.
Os aspectos técnicos a seguir expostos se mostram necessários para explicar objetivamente os impactos do IBS e da CBS no orçamento do brasileiro.
Ambos os tributos recaem sobre o valor agregado, substitutos do ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins, com técnicas de tributação muito parecidas, a incidirem sobre o valor agregado com aproveitamento quase pleno de créditos fiscais na entrada do bem ou serviço e lançamento de débitos fiscais na saída do bem ou serviço.
Apesar das inúmeras concessões feitas a segmentos poderosos e das armadilhas postas no texto constitucional, trata-se de um modelo de IVA avançado, diferente do ICMS, por exemplo, que ainda guarda fortes traços do embrionário tributo sobre consumo, concebido em 1954 na França.
A tributação sobre o valor adicionado com não cumulatividade (quase) plena reveste o IVA de neutralidade econômica. Atualmente, o ISS, o IPI, a PIS, a Cofins e sobretudo o ICMS enfrentam enormes problemas de interpretação normativa, com entraves de décadas para saber o que dá e não dá crédito fiscal, qual a classificação correta de certo produto na TIPI, que produtos estão no regime da substituição tributária, só para ficar nesses temas.
O maior beneficiário desse modelo de tributação é sobretudo o setor industrial, pois os agentes econômicos que se postam no meio da cadeia de produção e consumo tendem a ter muitos créditos fiscais que atualmente não podem ser aproveitados na integralidade, em face de limitações legislativas. As cadeias longas passarão a sofrer menos.
Dito isso, vamos aos impactos propriamente ditos.
- Ampliação da base de incidência: mais bens e serviços tributados, além de direitos.
Importante dizer que o IBS/CBS afetam não só os bens tangíveis (concretos, por assim dizer), como é atualmente (exceto energia), mas também os bens intangíveis (abstratos, por assim dizer), ampliando o seu campo de incidência.
Para deixar mais claro, agora haverá tributação sobre uma gama de bens que hoje não são alcançados pelos atuais tributos unificados. Em princípio, tudo que tiver valoração econômica como bem ou serviço, poderá ser tributado. Por exemplo: o chamado estabelecimento comercial, considerado um complexo de bens, na forma do art. 1142 do CC em vigor, potencialmente se submeterá à exigência do IBS/CBS. Operações com imóveis também serão tributados dentro da reforma tributária, apesar das transações imobiliárias terem sido contempladas com uma taxação menor. Esta nova tributação repercutirá no aumento de preços praticados por uma empresa e, ao final, serão suportados por nós consumidores.
E pior: os direitos também passarão a ser tributados por ambos os tributos, a atingirem irrestritamente quaisquer operações com direitos. Marcas, patentes, ponto comercial, direitos de imagem, direitos de uso, direitos autorais, em princípio estarão subjugados à tributação. Este ponto está passando despercebido pela maioria dos operadores do direito tributário. Restará ao legislador complementar fincar marcos bem precisos para o significado jurídico de operação e respectiva tributação sobre direitos. Aliás, o IBS e a CBS, mal apelidados nos colóquios tributários, deveriam ser denominados de IBSD e CBSD, imposto e contribuição sobre bens, serviços e direitos. Aliás, assim passaremos a chamar tais exações a partir de agora.
Claro que em face da significativa ampliação do campo de incidência, a atingirem também os direitos, mais dinheiro será gasto com tributos, a ser repassado para os preços dos bens e serviços, onerando o seu valor de compra feita pelos consumidores brasileiros.
- Redução do tributo x redução dos preços.
Mesmo que muitos industriais passem a pagar menos ou quase nada de IBSD/CBSD, isto não significa que os preços caiam na exata proporção da redução. É que há uma tendência de se manter os preços praticados anteriormente, o custo do tributo transformado em lucro, até porque do ponto de vista da psicologia das vendas o brasileiro já estaria acostumado a pagar determinado preço para determinado produto ou serviço. Só em alguns casos a redução do tributo poderá gerar deflação.
Ou seja, se antes da reforma pagava-se o preço médio de R$10,00 num produto de limpeza, por exemplo, porque havia o custo do tributo, o preço tenderá a ser o mesmo, poderá não haver redução, pois talvez alguns agentes econômicos não estejam dispostos a baixarem seus preços.
- Perfil do consumidor.
A previsão é de existir uma alíquota quase uniforme para todos os bens e serviços. A conta é simples: toda vez que o modelo do IVA brasileiro absorver um benefício fiscal, haverá aumento da alíquota geral, pois a arrecadação - exigência dos governantes para apoiarem a reforma - jamais poderá cair. Constitui apenas um jogo de tira lá, bota cá.
Em função dessas concessões cedidas às grandes corporações, há quem fale em alíquota geral ao redor de 30%. O Confaz, inclusive, em julho de 2023, cravou em casas centesimais a estimativa de 32,34%, segundo declarações colhidas da mídia, percentual que ultrapassa e muito o IVA húngaro. E isso, evidentemente, impactará sensivelmente nos preços.
Ademais, a inflação não é a mesma para cada perfil de consumidor, embora já exista esse fenômeno na atualidade. Um aposentado sexagenário consome bens e serviços diferentes do jovem de classe média e portanto assumes despesas qualitativamente diferentes. Há uma tendência das classes menos favorecidas consumirem mais gêneros de primeira necessidade, ao passo que a classe média também é muito consumidora de serviços. O rico, entretanto, do ponto de vista do IBSD/CBSD, sofrerá proporcionalmente baixos impactos a partir deste novo cenário.
- Alíquota geral única e combinação de preços.
A reboque da alíquota geral, muitos segmentos econômicos localizados poderão operar em cartel, a exemplo do que ocorre atualmente com certos setores comerciais. Nada impedirá agora que, auxiliado pelas redes sociais (grupos de chats), agentes econômicos de média capacidade contributiva passem a combinar preços para cima em determinada região, bairro ou cidade.
Isto porque o tributo sobre consumo – regra geral - tenderá à neutralidade, isto é, não irá interferir nos preços praticados em cada estado ou município, principalmente em face da diminuição dos benefícios fiscais. Afastado esse diferencial, as (más) empresas terão mais facilidade de fixarem um preço muito próximo – e elevado entre si.
Neutralidade tributária é salutar para a economia, não há dúvidas, desde que haja aparelho estatal para coibir os abusos do poder econômico e a fulminação da concorrência. Mas a inoperância da máquina estatal não justifica rechaçar essa boa prática econômica. Este será um “dever de casa” para os governantes fazerem.
- Aumento das despesas empresariais para cumprimento das obrigações.
Não se pode esquecer que o sistema tributário nacional passará por um razoável período de transição, dentro do qual conviveremos simultaneamente com a velha e a nova ordem constitucional de taxação sobre o consumo.
Isto porque os atuais tributos não serão extintos de imediato. O seu desaparecimento será gradual, à medida em que o IBSD/CBSD vão aumentando a sua carga, os percentuais de alíquotas dos primeiros paulatinamente migrando para estes últimos.
Um dos pilares da reforma tributária é simplificar o sistema, com redução importante das obrigações acessórias (emissão de documentos e informações econômico-fiscais, preenchimento de um número menor de formulários, escrituração racional dos lançamentos) e, portanto, diminuindo a despesa com mão-de-obra para trabalhar em tais tarefas. É o que se chama de redução dos custos de conformidade. Isto provavelmente irá acontecer, mas não por agora.
Na fase de transição, os custos de conformidade vão eclodir. As empresas neste lapso precisarão de mais horas e homens para fazerem frente às obrigações tributárias, não só as ligadas aos tributos atuais (ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins), como também as ligadas aos tributos a serem criados ou incrementados (IBSD, CBSD, imposto seletivo e as contribuições estaduais específicas). Afora as demais exações, serão nove tributos sob cuidados do setor contábil-fiscal das empresas, sem falar nas dificuldades operacionais em entender os novos impostos e contribuições, além do considerável aumento dos seus campos de incidência.
Muito provavelmente, durante este tempo, os empresários precisarão de mais profissionais, aumentarão os seus custos com pessoal e isto será repassado para os custos dos bens e serviços, encarecendo os preços finais.
- Serviços onerados.
Sem dúvidas, os serviços ficarão mais caros, apesar de alguns considerados essenciais contarem no projeto constitucional com cargas tributárias menos pesadas.
Entretanto, haverá outros serviços que, tributados hoje à alíquota máxima de 5%, passarão a ser onerados perto de 30%. Isto claro impactará nos preços.
Pensemos numa situação: Sempre que possível, o pobre ou o cidadão de classe média reserva um pouco de dinheiro para cuidar de sua estética. Agir assim é fundamental para a autoestima do ser humano. Salões de cabeleireiros, centros de beleza e estabelecimentos similares obrigatoriamente aumentarão os preços dos serviços realizados.
Das duas, uma: ou o cidadão vai apertar mais ainda o seu orçamento ou optará em tomar o serviço na mão de trabalhadores informais, um parente próximo, um vizinho. Fazer o cabelo será uma tarefa doméstica, familiar, aliás como hoje já é em muitas comunidades. As empresas prestadoras de serviços serão obrigadas a fecharem as portas, deixando de gerar renda e postos de trabalho. E não podemos esquecer que o setor de serviços é quem mais emprega no país.
Se no plano da estética podem surgir saídas, o mesmo não se diga em relação aos serviços considerados muito mais essenciais. Planos de saúde, mensalidades escolares, serviços de educação e eventos culturais, apesar de menor carga tributária da alíquota geral prevista para o IBSD, terão mesmo assim aumento de preços, haja vista a carga atual do ISS. Seria algo em torno de 5% hoje contra 12% pós-reforma, na base da alíquota geral de 30%. Um aumento de mais de 100% na carga tributária.
Cada vez mais ficará difícil pagar boas escolas, ter planos de saúde ou aceder a boas opções de entretenimento. Com absoluta certeza, a sociedade brasileira ficará menos educada, mais doente e de alma deprimida.
- Devolução do imposto para os menos favorecidos (cashback).
A proposta de emenda constitucional sob foco traz a previsão de que para a população mais carente o IBSD e a CBSD serão restituídos ao adquirente do bem ou o usuário do serviço, até determinados limites e condições fixados em lei complementar.
Embora seja uma medida que exprima justiça tributária, os seus reflexos não serão tão grandiosos assim.
Primeiro porque haverá limites para restituir os tributos, repita-se, não sabemos quais, por enquanto. Depois porque as somas do IBSD/CBSD devolvidos não serão tão altas assim. Talvez umas dezenas de reais por pessoa, no máximo ao redor de uma centena. Numa previsão otimista: a lei poderá determinar que no máximo seja devolvido ao cidadão menos favorecido R$99,00 por mês. No máximo.
Claro que para quem ganha por volta de um salário mínimo, qualquer dinheiro devolvido será bem-vindo. Mas os entes tributantes não querem perder arrecadação. O compromisso para apoiar a reforma tributária foi esse, reprise-se. Logo, a conta para devolver imposto já está feita. Nem um centavo a mais, para fazer uso de uma hipérbole.
Considerações finais.
Há muito a comentar sobre a PEC 45 aprovada na Câmara dos Deputados, tarefa a ser realizada em futuros textos, em outra série, após a aprovação do texto definitivo, dessa feita com enfoque mais jurídico-tributário. Aqui a preocupação foi mais econômica, mais pragmática, do ponto de vista do quão impactante será a reforma no orçamento de todos nós.
Já há previsão constitucional para a segunda fase da reforma tributária, a tocar as áreas da renda e a avançar na do patrimônio. Fala-se em muitas mudanças no imposto sobre a renda cobrado da pessoa física ou jurídica. Oxalá não tenhamos que pagar a conta. Outra vez.
A mensagem final vai agora respeitosamente direcionada para os governantes estaduais e municipais: Na esteira de uma proposta de mudanças constitucionais desenvolvimentistas, poderá haver retrocessos importantes, a atingirem os responsáveis pela arrecadação de tributos em favor dos Estados e Municípios.
Com a hipótese de criação do Conselho Federativo, o qual caberá fazer (quase) toda a administração fazendária do IBSD, corre-se o risco desses entes federativos se reduzirem a meros apêndices administrativos do governo central e paracentral. É fundamento da ciência política que para assenhorar-se do poder é preciso ter recursos para exercê-lo. Quem não tiver a gestão das receitas, passo imediato, perderá o poder, por inanição financeira. E daí para a centralização autoritária será um pulo. Precisamos, portanto, preservar o federalismo de equilíbrio.
Do ponto de vista da gestão da máquina pública, Governadores e Prefeitos – autoridades políticas legitimadas pelo voto - poderão ser apequenados pelo Conselho Federativo, rebaixados a funcionários de escalão irrelevante. O pacto federativo, cláusula pétrea constitucional, reemergirá roto após a aprovação da reforma tributária. E aí então as instituições ficarão mais fragilizadas, sem a descentralização necessária para um país democrático das dimensões territoriais do Brasil.
Definitivamente, o “capiroto”, o “cramulhão”, o “coisa” reside, se esconde e se delicia nas entrelinhas, detalhes e subterrâneos da norma.
(*) Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia, membro do Conselho Estadual da Fazenda (Consef), Doutor em Direito pela UAL/UFPE, Autor do livro “Fisco e Contribuinte no PAF”, Ex-Diretor Jurídico do IAF Sindical.
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