Durante os três séculos do período colonial, a administração pública no Brasil foi uma fiel herdeira do governo-geral de Tomé de Souza, transplantado em 1549 para a Bahia. O escritor e pesquisador Eduardo Bueno no seu último livro A coroa, a cruz e a espada, de maneira original e com riqueza de detalhes históricos sistematiza o processo de ocupação e colonização da américa portuguesa. E nesse processo afloram os traços determinantes da burocracia estatal ibérica e as suas raízes que chegam aos dias atuais. Eduardo Bueno é objetivo: "O clientelismo, a leniência, o nepotismo, as mazelas que, agravadas pela desigualdade, pelo absoluto desrespeito às leis e pela corrupção generalizada, continuam minando o desenvolvimento do Brasil 500 anos depois".
Um século depois da implantação do modelo de administração oriundo do governo-geral, o padre Antonio Vieira denunciava que não se administrava visando o bem-geral da sociedade. Pregando na Bahia, em 1641, quando da visita do vice-rei Marquês de Montalvão, o padre Vieira, o saudou afirmando: "Perde-se o Brasil, porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vem buscar nossos bens."
No início do século XIX, fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte, a Casa Real Portuguesa transplantou-se para o Rio de Janeiro. Dom João VI e a sua corte fez do Brasil a sede do Império Português. Anos depois, com a derrota napoleônica na Europa, retornaria a Lisboa. Deixando o príncipe dom Pedro I, que em 1822 proclamaria a independência. Nascia o Brasil Imperial que se estenderia até 1889, quando um golpe militar implantaria a República, com o Marechal Deodoro da Fonseca a liderá-la e que seria o primeiro presidente.
E a administração pública, nesses diferentes períodos, como era formatada? Nas quase sete décadas do Império era constituída por uma burocracia elitista, fidalga e adepta de exarcebada vocação patrimonialista. De 1889 até 1930, com a República Velha prevaleceu a manutenção de uma realidade híbrida onde ao lado de setores extremamente preparados, prevalecia a vontade coronelista-paternalista. A emergência de uma classe média, onde os movimentos militares tenentistas protestavam com o poder das armas, era uma clara expressão da insatisfação das camadas urbanas com os privilégios conservadores que prevaleciam na vida pública. Desembocaria na Revolução de 1930, que mudaria radicalmente o País agrário-exportador.
A administração pública a partir de 1936, com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), vê o surgimento de vigorosa semente da modernidade administrativa no Brasil. Fundamentada na teoria weberiana da ética da responsabilidade, estruturada no princípio do mérito profissional. Institui o concurso público e de treinamento à altura das necessidades estratégicas do Estado.
O surgimento de uma burocracia profissionalizada na administração era conseqüência da própria inserção de um capitalismo moderno no Brasil. Foi indiscutível avanço na formação nacional e lançou sólidas bases para o desenvolvimento. A consolidação das carreiras de Estado e de administradores públicos de alto nível no processo de transformação ditado pelos princípios da competência e espírito público significou um inegável êxito. Batido, mas não derrotado, o velho coronelismo patrimonialista, infelizmente continua presente até hoje na administração pública gerando os filhotes: clientelismo e fisiologismo.
A modernização do Brasil, entre 1930 e 1980, quando atingimos as mais elevadas taxas de crescimento econômico do mundo, teve na profissionalização administrativa uma sólida base. O Estado foi o principal estrategista na implantação dessa marca de desenvolvimento econômico. E isso não teria sido possível sem a existência de um quadro de servidores dotados de espírito público, competência e reconhecida honestidade.
Lamentavelmente nas últimas duas décadas, diferentes governos vem enfraquecendo e desprestigiando a administração pública brasileira. A terceirização, por exemplo, é uma prática fortalecedora do clientelismo fisiológico. A isso some-se o loteamento das funções públicas de Estado, com nomeações políticas em que a incompetência profissional é atestada na multiplicação de delitos e ilicitudes que vem freqüentando o dia dos negócios públicos brasileiros.
O patrimonialismo clientelismo invade áreas até então inexpugnáveis ao loteamento de cargos. A Petrobras, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) são exemplos dessa realidade. E eles se estendem por toda a estrutura de governo. As grandes vítimas são os brasileiros que vêem a deterioração da qualidade dos serviços públicos. Essas distorções marginais devem ser combatidas e extirpadas. Nenhum país pode ter uma administração improvisada quando almeja um futuro de desenvolvimento com justiça social.
O servidor público do Estado brasileiro, nele ingressou pelo mérito da competência e do concurso oficial, não pode ser confundido com a malta de incompetência que vem invadindo a administração nacional. O aparelhamento da estrutura administrativa federal se expressa nesses números: somente em 2007, por concurso, ingressaram no serviço público 11.939 servidores, já as contratações para cargos e funções de confiança atingiu o recorde de 75.987 pessoas. Para cada 1 concursado, 7 filhotes do clientelismo nefasto.
A reforma do Estado, inconclusa, deveria ser retomada para dotar o Brasil de uma estrutura de administração pública à altura dos seus desafios presentes e futuros. O servidor profissional do Estado brasileiro está sendo marginalizado no seu papel fundamental de servir não a governos, mas à sociedade nacional.
Hélio Duque é doutor em Ciências, área econômica, pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi deputado federal (1978-1991). É autor de vários livros sobre a economia brasileira.
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