17/10/2024

Miudinha

(Os pobres também comemoram o Natal, às vezes)

Morava embaixo do viaduto grande, perto da última pilastra, já na descida. Com ele, vários outros que eram chamados de “moradores de rua”. O lugar até que não era tão mal. Tinham conseguido um bocado de caixas de papelão e fincaram uns paus no chão de terra dura, fazendo as paredes com o papelão. O telhado nem precisavam se preocupar, o viaduto era o próprio. Só era ruim quando o vento batia forte, empurrando a chuva para dentro dos cubículos. Pertinho, o barranco e o matagal para as necessidades. No mais, tudo bem. Pior seria ter que pagar aluguel num barraco, sem ter como. A luz era de lampião, daqueles de mecha. Cozinhava com uma lata em cima de três pedras, com uns gravetos por baixo. Vida difícil, mas não se queixava, já tinha passado por coisas piores.

O vizinho, Zé da Praia, vivia ali ao lado com a companheira e a filha, que nem era dele. A garota tinha seus cinco anos, mas parecia ter três, com aqueles olhões na carinha triste e magra. A mãe a levava quando ia pedir esmolas, e isso impressionava quem passava. Ele não sabia por quê, mas gostava dela; sempre acariciava sua cabecinha quando passava. Chamava-a de Miudinha, nem sabia seu nome verdadeiro. Zé bebia todo dia, às vezes caía ali no chão mesmo, e a mulher praguejava. Todos estavam sempre com fome.

De vez em quando, a polícia aparecia procurando traficantes ou só para "mostrar serviço" e baixava o cacete, destruindo os cubículos. Uma vez, tinha tomado porrada só porque encarou o cabo que comandava o grupo, um negro como ele: “O que é que tá olhando, palhaço?”, indagou o cabo. E desceu o pau, bateram até cansar. Mas estava conformado, o papel dos meganhas era esse mesmo: bater nos pobres, e a sina deles era apanhar. Nessas ocasiões, eles se sentiam mais solidários; um ajudava o outro a reconstruir o barraco e xingavam juntos os filhos da puta. Depois que se iam, é claro.

Véspera de Natal. Andava pela zona das lojas, aproveitando a generosidade que atacava as pessoas naqueles dias. Já tinha conseguido uma boa grana. As lojas estavam cheias, e ele ajudava as pessoas a levar os pacotes para os carros, ganhando um extra. Uma senhora gorda que ele ajudou, cheia de embrulhos, bateu a porta do carro e saiu dirigindo, com pressa. Quando olhou para o chão, lá estava o pacote. Ela tinha deixado cair na pressa. Ele até correu, mas não conseguiu alcançar o carro. E agora?

Caía a noite quando chegou ao viaduto; levava uns pães e umas fatias de presunto. Acendeu o lampião, colocou pedaços de presunto dentro dos pães. Abriu então o embrulho: uma boneca, cabelos loiros, vestido vermelho, linda. Ficou pensando, lembrou-se da infância no interior, décadas atrás, da mãe criando-o e os outros sozinha. A irmãzinha com uma boneca velha, sem graça, que vivia agarrada nela. A fome sempre apertando; a seca. Mas ele sobrevivera, cresceu e veio para a cidade grande. Nunca mais vira os seus. Conseguiu emprego na construção, juntou um dinheirinho, morava num barraco decente, chegou a ter mulher. Aí começou a beber, até que perdeu o lugar. Depois, nunca mais foi o mesmo. Foi caindo, caindo, e acabou na rua, como os outros. Hoje bebia menos, o dinheiro nunca dava. Vida madrasta! A lágrima rolou.

Lembrou-se de Miudinha. Eles já estavam no cubículo vizinho. Chegou lá, ofereceu uns pães, logo devorados com avidez. Disse a ela: “Já ouviu falar de Papai Noel?” Miudinha olhou para ele admirada e negou com a cabeça, silenciosa como sempre. Ele disse: “É um velhinho bom que se veste de vermelho e, na noite de Natal, deixa presentes para as criancinhas. E hoje é Natal.” Os olhos dela brilharam.

No dia seguinte, quando Miudinha acordou, encontrou aquela boneca linda que Papai Noel tinha deixado. Nunca mais ela iria esquecer aquele dia.

(*) Auditor Fiscal aposentado.

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